“Um dia o Quim será encontrado morto na rua. E há muitos Quins no Porto”

Joaquim Pinheiro Fernandes não se impressiona com o frio. Em vez de planos de emergência, o sem-abrigo gostava que houvesse um projecto para lhe dar uma casa. Porque o problema vai para lá do Inverno.

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Joana Gonçalves
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Olhem para ele. Decorem-lhe o nome, o rosto, a história. E se daqui a uns tempos o virem protagonista de uma notícia trágica em páginas de jornais, sintam-se culpados. “Um dia o Quim será encontrado morto na rua. E há muitos Quins no Porto.” Daniel Horta Nova sugere o exercício futurista para falar de algumas consciências que deverão sentir-se pesadas — na segurança social, no sistema, na sociedade que escolhe não ver. Quim, Joaquim Pinheiro Fernandes, é sem-abrigo, “um dos muitos da cidade entregues à sua sorte”. Daniel venceu as ruas, mas não esquece o tempo em que nelas viveu. Nem os dias de partilha de uma casa abandonada com Quim, o amigo que vai vendo perder fôlego todos os dias: “Nunca ninguém fez nada concreto para o ajudar”.

A noite caiu há algumas horas e o frio acentuou-se. Os termómetros fizeram a autarquia portuense accionar na segunda-feira um plano de contingência: as estações de metro do Bolhão e da Casa da Música estiveram abertas durante a noite e o antigo Hospital Joaquim Urbano reforçou o número de camas para receber quem por lá quisesse pernoitar até quinta-feira, se as previsões meteorológicas se mantivessem.

Joaquim Fernandes não está a par da iniciativa. Encolhe os ombros a desvalorizar o frio que não lhe faz mossa. Pouco lhe interessa falar em soluções de tectos temporários. “Só queria uma casinha”, coisa pequena, para viver sozinho. Um espaço ao qual pudesse chamar lar. Uma cozinha, pia para lavar a roupa, tábua para passar roupa a ferro. “Se me ajudassem, podia pagar uma parte e tudo.”

O mais novo de três irmãos de uma “família pobre”, Quim perdeu a mãe pelos nove anos e viu-se interno na Casa do Gaiato. A irmã foi para Braga, o irmão mais velho para fora do país. “Um mês depois de lá estar morreu o meu pai. Nada feito. Tinha de me fazer à vida”, recorda. Aprendeu o ofício de serralheiro civil, fez-se cozinheiro, estudou até ao sétimo ano. E quando um amigo recrutado para a tropa lhe perguntou se queria ocupar o lugar dele na cozinha de um restaurante da cidade ele não hesitou.

Passou por várias das casas conhecidas do Porto: o Convívio, o Capa Negra, o Gambamar, o Cortiço, o Azul e Branco. Numa delas, conheceu a companheira com quem partilhava casa, primeiro numa habitação social na Pasteleira, mais tarde em Contumil. Mas os ciúmes acabariam por precipitar a primeira queda. “Ela perseguia-me. Era impossível. Um dia decidi ir embora. Disse-lhe ‘a casa é tua, a rua é minha’”.

Não sabia que seria tão literal. As dificuldades de integração eram grandes. Por sugestão da Segurança Social, foi parar à Remar. E lá surgiu a oportunidade de emigrar: “Aceitava o que aparecia, precisava de trabalhar.” Passou pela Alemanha, Suíça, Roménia. Regressou ao Porto. Levantava-se às 7h30 e trabalhava até à uma da manhã. Sentia-se explorado. “Já não aguentava mais. Fui à Segurança Social dizer para me mandarem para outro lado.”

Sugeriram-lhe um albergue. Mas Joaquim sabia das histórias que se contavam desses lugares: “São só ladrões, não queria ir.” Chegou a ter lugar numa pensão em Júlio Dinis, mas a senhoria pô-lo na rua quando, por caridade, Joaquim decidiu acolher dois amigos no seu quarto.

Não se lembra da primeira noite que passou na rua. Só de a queda ser vertiginosa. “E eu só queria mesmo uma casinha, sabe?”. Joaquim evita as críticas acutilantes, debaixo do olhar indignado de Daniel Horta Nova: “És bom demais, Quim, és bom demais”. Ele parece consumido pela vergonha, talvez de verbalizar ou admitir aquilo que o consome: ver-se transparente entre a multidão, transformado num número, reduzido a papéis.

Aceita mostrar o “barraquito” onde vive, “ainda que não seja sítio próprio para senhoras”. Para lá do portão branco fechado a cadeado em pleno centro da cidade, esconde-se envergonhado um Porto invisível. No descampado, há tendas semi-rasgadas onde vivem agora dois romenos e onde dormiu Quim até há pouco tempo. Mais à frente, numa casa semi-destruída, têm morada ele e um jovem casal.

Joaquim aponta a lanterna para o chão, vai aconselhando cautela, e aproxima-se da antiga casa senhorial: “Vivo aqui”, conta ao abrir a porta para mostrar o seu pequeno quarto. De um móvel antigo colocado na horizontal com cobertores e edredons por cima fez a cama. Não tem luz nem água (paga 50 cêntimos quando quer tomar banho nos balneários públicos de Cedofeita). Os bens resumem-se a uma mala e dois ou três sacos de roupa, a maior parte dela encharcada pelas chuvadas de há meses, quando ainda vivia nas tendas.

Todos os dias, de segunda a domingo, Joaquim levanta-se às 7h30 para ocupar o seu “posto de trabalho”, ao lado do placar de promoções do Lidl. “Fico aqui. Só digo bom dia, sorrio para as pessoas”. Já é conhecido por aquelas bandas. Os almoços e jantares fá-los no restaurante Uga-Uga, a dois passos dali, onde lhe concedem fiado sempre que não tem orçamento suficiente.

Vive das esmolas e do Rendimento Social de Inserção, à volta dos 180 euros. Volta e meia vai parar ao hospital, seja pelo problema sério de alcoolismo que já lhe afecta o fígado seja pela diabetes ou pela epilepsia. “Tenho de tudo, mas aguento-me de cabeça erguida.”

“E por quanto tempo?”, questiona Daniel Horta Nova a chamá-lo à razão. “O Quim precisa de ajuda a sério. Tem todo o direito de não querer ir para um albergue. Mas precisa de ser acompanhado, tratar disto”, diz a apontar para a cabeça.

Para Daniel — a viver na casa de uma amiga mas consciente de que a rua pode estar à distância de uma curva — , “para salvar um sem-abrigo da rua é preciso deixá-lo estar na rua”, começa. “Aos poucos, tem de se dar condições às pessoas, tratar da saúde mental. Só depois é possível sair da rua”. Palavra de quem lá viveu por cinco anos seguidos e de quem volta e meia ainda lá cai.

O problema é profundo. “O sistema está montado e não podem ser os sem-abrigo a desmontá-lo”, aponta, mostrando-se critico de algumas associações cuja estratégia se centra na alimentação em vez de reinserção. Se há um plano de acção com 60 milhões de euros para apoiar estas pessoas, “para onde vai esse dinheiro?”, questiona o criador do Movimento de Apoio ao Sem-Abrigo, que promete novas acções para breve.

Daniel Horta Nova medita uns segundos antes de começar a falar do plano de contingência contra a vaga de frio accionado esta semana. “Quer que seja sincero?”, pergunta em jeito de introdução: “Isto é das maiores humilhações que se fazem aos sem-abrigo. Eu pergunto: e depois de quinta, já não podemos ter frio e não há problema em viver na rua?”

Excepções à parte — quando quem vive na rua tem roupa ou cobertores insuficientes —, “os sem-abrigo não têm frio”, declara. “Percebam de uma vez por todas que não é esse o problema.” Daniel Horta Nova gostava de ver mais técnicos a virar as regras do avesso em vez de se ajoelharem a elas. Gostava de saber para onde vão os donativos que se fazem por estas alturas: “Chegam a associações cobertores, roupa, bebidas quentes. Mas também dinheiro. Onde é que ele está?” Sem meias palavras, denuncia: “os sem-abrigo ainda dão jeito a muita gente” (“o que aconteceria aos números do desemprego se estas pessoas entrassem no sistema?”) e deixa até uma sugestão. “Proponho à Santa Casa [da Misericórdia] que abdique do último prémio, aquele dos dois euros, e o doe aos sem-abrigo. Bastava isso para mudar o mundo.”

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