Descentralizar ou desconcentrar? Para que e para quem?

A descentralização, se não for acompanhada da desconcentração territorial, não evitará o definhamento progressivo a que o interior foi votado.

Desde 1976 que os sucessivos programas dos governos prometem “pacotes de descentralização”, “reforço da autonomia local”, “reforma do Estado”, etc., etc. Muito se fez desde então e o rol de virtudes e de benefícios que dai resultou é enorme. Todavia, as sucessivas vagas de descentralização não evitaram que Portugal se tornasse no país europeu com a maior concentração territorial da população e das atividades económicas numa pequena parcela do território nacional, e um dos mais concentrados em todo o mundo.

Se razões houvesse que impedissem uma boa circulação de pessoas, bens e informação até seria admissível que tal acontecesse mas, como todos sabemos, tal não acontece. Temos uma das maiores densidades de autoestradas do mundo complementada por uma boa rede de estradas nacionais e municipais, temos uma rede ferroviária aceitável, que até já foi muito mais extensa, temos bons acessos aos portos marítimos, temos uma boa rede de comunicações fixa e móvel, uma das melhores coberturas de fibra ótica e de telecomunicações da Europa, que proporciona bons serviços 3G onde eles são necessários, etc., etc. Embora com algumas poucas exceções nesta matéria, temos que chegue e que sobre.

Descentraliza-se para desenvolver e aumentar a coesão económica e social, que na prática tem acontecido, mas os efeitos no ordenamento do território são contrários ao desejado. Estamos perante um paradoxo. Porquê? Porque as forças centrípetas que puxam para o litoral, sobretudo para as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, a população e as atividades económicas são cumulativas.

Que forças são essas? São muitas, algumas delas incontroláveis. Uma delas é a globalização, onde o que é grande que ser ainda maior. Outra são as corporações formais e informais (administração pública, organizações partidárias, associações e organizações económicas, etc.) que querem tudo na mesma, sem grandes mudanças e sobressaltos. Outra é a decisão política que cria condições para que isso aconteça apoiando a globalização e as corporações. Veja-se, por exemplo, o Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Laborais Precários (PREVPAP). Quantos indivíduos foram abrangidos em Lisboa? E no Porto? E em Bragança, Guarda, Castelo Branco e Portalegre? Estamos curiosos para conhecer o impacte territorial desta medida. 

A descentralização está outra vez na ordem do dia, Governo e Presidente da República esperam pela oposição para uma vez mais se entenderem e promover mais descentralização sem, contudo, atender ao que se irá passar no ordenamento do território.

Em abstrato, a descentralização é benéfica e não terá grandes opositores, mas se não for acompanhada de uma verdadeira desconcentração territorial da administração pública e da atividade económica, não terá grandes efeitos na maior parte do território nacional, porque os poderes públicos e os poderes políticos que lá existem já se encontram muito enfraquecidos.

Entre 2001 e 2011, 198 dos 278 municípios perderam população, um processo que certamente continuou e se agravou até 2018, pelo que se conhece das estatísticas demográficas do INE. Mais de uma centena de municípios tem menos de dez mil habitantes. Das 23 comunidades intermunicipais, três têm menos de 100 mil habitantes e sete menos de 200 mil. Muitas destas estruturas políticas administrativas têm pouco para fazer. Orçamentos muito pequenos, obras insignificantes e eleitores e população cada vez em menor número. Em alguns municípios já nem se licencia obras todos os meses há já muito tempo.

Agora que na Internet é possível aceder às atas das reuniões dos órgãos municipais, facilmente se constata que além das reuniões ordinárias onde são aprovados os documentos de gestão, o resto ou são miudezas que pouco ou nada interessam ao cidadão, ao munícipe e ao desenvolvimento, ou assuntos de promoção pessoal, de individualidades ou de famílias, ou de grupos de interesses, ou assuntos politicamente corretos que intentam ao bem nacional (moções de apoio ou de censura aos governos consoante a cor política, independentemente do que estes tenham ou não decidido em prol do desenvolvimento local ou regional).

Contrariamente a outros países, a legislação nacional em geral trata as autarquias locais e as suas associações ou organizações de forma igual. As atribuições e competências são as mesmas do ponto de vista funcional mesmo que a dimensão do município não seja adequada à prossecução de determinado interesse público. Em grande parte delas, o pequeno orçamento serve praticamente para as despesas de funcionamento, pagar os salários e assegurar que os órgãos funcionem, e não dá para alavancar investimentos.

Portanto, a descentralização apregoada e que for realizada e acompanhada do orçamento respetivo tem impactes muito diferenciados nas diversas autarquias a nível nacional. Naquelas em que a complexidade e a dimensão da competência ou do assunto for significativa e encontre na dimensão e no orçamento municipal a escala adequada para que possa ser prosseguida, a descentralização será benéfica e efetiva. Naqueles municípios em que tal não aconteça, a descentralização não terá efeito direto, para não dizer nenhum. Por exemplo, se forem descentralizadas competências que envolvam o ensino secundário para os municípios, isso só afetará diretamente os municípios que disponham desse nível de ensino.

Já nos municípios mais pequenos, o medo é que a reforma ou a descentralização retire alguma competência, mesmo que pouco ou nada se faça com ela, não vá esvaziar-se o vazio e às tantas ainda se ponha em causa a existência do próprio município e da respetiva autarquia. Se por acaso se promove a comunidade intermunicipal através da descentralização e se esta for acompanhada da concentração da competência dos municípios, tal é considerado um atentado à autonomia do poder local e uma promoção do centralismo. O melhor é não fazer nada mesmo que isso seja prejudicial para as populações.

Atente-se, por exemplo, às preocupações do Código Administrativo de 1896 com as devidas adaptações e o contexto atual que vivemos. Este código classificava os concelhos em três ordens, segundo critérios baseados na população e nas possibilidades financeiras: concelhos urbanos, concelhos rurais perfeitos e concelhos rurais imperfeitos. Os concelhos rurais imperfeitos (de 3.ª ordem) tinham menor autonomia e exerciam apenas parte das atribuições que os outros municípios tinham, sendo obrigados a associar-se a um concelho de 2.ª ou 1.ª, sendo este, de maior categoria, que exercia então a competência que o concelho rural imperfeito ou de 3.ª ordem não podia exercer.

A descentralização, se não for acompanhada da desconcentração territorial, não terá um contributo muito significativo para o ordenamento do território e para a coesão territorial e não evitará o definhamento progressivo a que o interior foi votado. Para produzir efeitos deverá ser acompanhada em simultâneo por um programa de desconcentração territorial do Estado com medidas de curto, médio e longo prazo, que promovam a sustentabilidade do interior através do reforço das suas principais cidades.

Há serviços que pela sua natureza, como algumas atividades de armazenagem, arquivos mortos, digitalização de documentos, entre outros, podem ser fácil e imediatamente deslocalizados para o interior criando emprego e fixando população e, em simultâneo, contribuir para reduzir a despesa pública e constituir uma oportunidade de encaixe financeiro para o Estado (com a alienação ou aluguer dos imóveis em Lisboa e no Porto). Imóveis disponíveis no interior não faltam, há escolas fechadas e outras a funcionar a menos de meio gás que não tardarão também a fechar. Haverá também outros serviços e funções que o poderão ser no quadro de uma reflexão mais aprofundada.   

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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