Aos génios só peço que digam “bom dia”
O que posso exigir é o mesmo que a qualquer um: que trate as pessoas como pessoas. Não há talento, génio ou integridade artística que possam isentar quem quer que seja dessa obrigação.
Numa residência de estudantes em que vivi havia um tipo que nunca cumprimentava as pessoas, fossem elas os seus vizinhos ou a senhora que lhe limpava o quarto. Uma vez comentei o facto e responderam-me “ah, mas ele é um grande pianista!”. Não era caso único lá na casa. Para cada um havia sempre uma desculpa semelhante: fulano ia ser o melhor da sua geração, sicrano era já considerado um génio, etc. A minha reação foi: eu não quero saber se é um génio, eu quero é que ele cumprimente as pessoas. Não custa nada, e não vai ficar pior pianista por isso.
Como é evidente, dizer “bom dia” nunca é só dizer bom dia: é um primeiro reconhecimento de que os outros existem e que o mundo não acaba no perímetro onde cabem as minhas obsessões. Mas o que eu quero dizer com “bom dia”, neste caso, vai muito para lá de meramente cumprimentar as pessoas. Significa tratar as pessoas como pessoas, sem exceções — que nem a arte, nem o poder, nem o talento justificam. Esse é um ponto importante no contexto dos debates de agora por causa do assédio sexual no meio artístico (e que não se limitam ao cinema; Knight Landesman, diretor da revista Artforum que é a porta de entrada no estrelato nas artes visuais, foi acusado de assédio e também de retaliação profissional contra mulheres que negaram os seus avanços). É evidente hoje para todos que, mesmo em sociedades desenvolvidas, as mulheres têm vivido num ambiente profissional enviesado contra a sua dignidade e autonomia — e que o movimento para acabar com isso pode tornar as nossas sociedades muito mais iguais e saudáveis.
Este fim-de-semana, a atriz Uma Thurman, famosa pelos filmes que fez com Harvey Weinstein (agora reconhecido abusador) e Quentin Tarantino, veio denunciar o assédio que sofreu às mãos do primeiro, embora reconhecendo em surdina que ela própria fez parte do sistema e que o denunciou menos do que deveria. O que me chamou mais a atenção, porém, não foi nada ligado aos comportamentos sexuais, mas aos comportamentos artísticos: a acusação de que Tarantino a teria obrigado a fazer uma cena perigosa num carro para preservar a integridade estética de Kill Bill, um dos filmes de ambos. Contrariada, Thurman guiou o carro, teve um acidente e quase se arriscou a perder as pernas. Como esta história não tem a mesma capacidade sugestiva que têm as histórias de sexo, é possível que ela fique perdida. Mas é pena, porque ela nos dá acesso a desvendar um outro tipo de abuso de poder que tem sido muito menos debatido.
O que tem sido menos debatido é que, no caso específico da arte, uma boa parte do abuso de poder estava e está ainda inscrito numa visão do talento e do génio artísticos como sendo merecedores de uma espécie de jurisdição especial. Esta ideia tem raízes antigas. Mas à medida que o carisma, a carreira ou o poder deixaram de poder justificar comportamentos abusivos na política, na academia ou nas empresas, nas artes foi sobrevivendo uma versão ainda mais rebuscada desta ideia: não só o génio justifica o abuso, como o abuso é a marca do génio. Um exemplo até há poucos anos era o do realizador Lars von Trier, sempre alvo de uma exaltada adoração da qual faziam parte as histórias sobre como levava as suas atrizes a extremos de desconforto para delas extrair as melhores interpretações. Ora, isso nunca passou de uma treta. Um manipulador é um manipulador. Um bom profissional não precisa de abusar das pessoas com quem trabalha por supostas razões de excelência. E a atitude mental perniciosa que está por detrás destes comportamentos não deve ser escamoteada pelo facto de o abuso não ser sexual (nem ser exclusivo de homens: o que não falta são histórias de mulheres de sucesso nas artes conhecidas pelos comportamentos manipulatórios e agressivos em relação aos assistentes, por exemplo).
Por muito que as categorias do talento possam ser desconstruídas, a verdade é que a vida mereceria bem menos ser vivida sem as marcas de génio que a arte nos deixa. Elas são tão raras que, em bom rigor, eu não posso exigir a um artista que produza obras-primas (embora dependa delas para alcançar aquilo que o banal não permite). O que posso exigir é o mesmo que a qualquer um: que trate as pessoas como pessoas. Não há talento, génio ou integridade artística que possam isentar quem quer que seja dessa obrigação.