Os mais velhos e o engodo das “ciberburlas românticas”
Em Portugal, onde quase 20% da população tem mais 65 anos, cresce a preocupação com as fraudes e burlas informáticas direccionadas para utilizadores idosos. As autoridades reconhecem que os mais velhos são um alvo fácil e têm vulnerabilidades específicas. As chamadas “burlas românticas” preocupam e estão a ganhar relevância nesta faixa etária. Terça-feira é Dia da Internet mais Segura.
Fazer queixa à polícia estava fora de questão para Manuela. Com 79 anos e casada há mais de 50, nunca tinha sido tão enganada na vida. Pior do que ter ficado sem saldo e sem crédito bancário seria ir fazer queixa às autoridades. Mostrar à Polícia Judiciária os emails, os extractos bancários e, sobretudo, as mensagens privadas que trocou durantes quase seis meses com aquele “inglês falso”, seria humilhante para ela. Mais ainda no meio pequeno onde vive, em Braga, onde “toda a gente fala de toda a gente”, refere. “Eu não sou culpada, sou vítima de uma burla!”, confessa ao P2, como justificação para não ter denunciado o seu caso.
Pela aparência que tinha, por “até ser amiga dele no Instagram” e pela atenção que lhe dava através de mensagens quase diárias, ele parecia-lhe bem-intencionado. O marido já sabia que a mulher tinha dado dinheiro para uma obra de caridade qualquer no estrangeiro. Mas nunca pensou que a sua própria mulher estava a ser pedida em casamento pela Internet. “Via-se logo que aquilo só podia ser uma burla”, adianta ao P2, comparando a situação ao “conto do vigário” ou à “carta da herança”, esquemas populares de burlas. Ir com ela à polícia é que “nem pensar”. Mas fizeram uma queixa anónima, pela Internet.
Apesar da idade, Manuela (nome fictício) não corresponde ao protótipo da avó que fica em casa a fazer bolos para os netos. Prefere viajar ou jogar no computador ou no tablet, onde também pode falar com amigas e familiares via Facebook ou ver fotografias no Pinterest e Instagram. Era aqui, nesta rede social de fotografia, onde ficava a “conversar” com o homem que a enganou. Por alturas do Natal do ano passado, o “inglês” faltou a um encontro perto de sua casa para a conhecer pessoalmente e entregar-lhe um presente a agradecer a ajuda para uma obra de caridade. Decepcionada por ter ficado pendurada, decidiu telefonar-lhe. Ele desculpou-se com uma emergência. “Tinha um inglês horrível”, recorda Manuela. Foi depois dessa conversa que decidiu bloquear todos os contactos que tinha com ele em todas as redes sociais. “Fiquei muito traumatizada”, confessa. “Mais por ter sido enganada do que pelo dinheiro”, acrescenta ao P2. A quantia correspondia a todas as poupanças que tinha. Ele, o “inglês”, nunca mais a procurou. Nem por email.
“A nova tendência é a burla romântica”
As “burlas românticas” na Internet têm uma dupla faceta. Para além dos danos patrimoniais, a pessoa sofre um impacto emocional quando descobre que está a ser vítima. É a “nova tendência” deste tipo de crime, confirma Carlos Cabreiro, director da UNC3T (Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica), da PJ. Criada em finais de 2016 em Portugal para a prevenção, combate e repressão da criminalidade, trabalha em rede com organismos como a Interpol, a Europol ou a Eurojust. Por esse motivo, as informações sobre a criminalidade chegam-lhe por várias vias.
Até ao momento, ainda não existem registos oficiais em Portugal que especifiquem esta modalidade de burla informática e muito menos por idade, o que não significa que não existam. Neste tipo de burlas que envolvem sentimentos, pode entrar em jogo um novo fenómeno, a sextorsion, o mesmo termo usado pelos investigadores nos casos de violência e crimes contra os menores (como o bullying ou a pornografia infantil), explica o director da UNC3T.
O princípio é o da chantagem. “Se a vítima não faz o que o criminoso quer, ele ameaça-a com a divulgação de informações ou dados íntimos”, acrescenta Cabreiro. Os elementos utilizados podem ser fotografias de nudez ou mensagens privadas comprometedoras. No caso das “burlas românticas”, as vítimas não se apercebem de que estão a ser enganadas e exploradas.
Só numa “segunda fase”, em que começam a perceber que o “namoro” virtual serve afinal para pedir mais dinheiro, é que compreendem que estão a ser ludibriadas. O valor roubado, o tempo e a intensidade da relação virtual estabelecida agravam as consequências. E o impacto psicológico pode ser dramático para a vítima.
Scammers: vigaristas sofisticados
As histórias dos namoros virtuais com os scammers (responsáveis por um scam, que consiste no roubo de dados pessoais da vítima e, claro, de quantias em dinheiro) parecem todas clonadas umas das outras e atingem homens e mulheres.
Os autores são quase sempre militares na reserva ou perdidos num qualquer cenário de guerra, como o Afeganistão. Apresentam frequentemente fotografias que mostram o seu bom porte físico ou aparecem fardados, para “provarem” a sua carreira militar. Quando entram em contacto com as vítimas, partilham as suas (falsas) histórias de como se sentem sós ou abandonados pela família.
Um dos principais indícios da falsidade das suas histórias é escreverem mal inglês, frases copiadas a partir de programas de tradução automáticos pouco fiáveis. “A sua gramática era horrível”, conta Laura B. (nome fictício), outra das vítimas deste tipo de burla. As autoridades de investigação do cibercrime sabem que muitos destes burlões têm ligações a países africanos, especialmente à Nigéria e ao Gana. Nesses países, é sabido que existem gangues organizados de burlões informáticos. Funcionam tal como se estivessem a trabalhar num call center: contactam pelo computador ou telefone várias pessoas, em massa e insistentemente. Até que algumas acabam por cair na armadilha.
Laura B., com 67 anos, foi uma das vítimas de um falso militar. Está reformada e vive numa pequena cidade de Inglaterra. Depois de ter passado dos 60 anos, por sugestão de amigas, decidiu começar a navegar na Internet e a ligar-se às redes sociais. A ideia era conhecer pessoas novas e, quem sabe, encontrar um amor. Foi então que recebeu um pedido de amizade de um (falso) soldado norte-americano, pelo Facebook, um homem que mais tarde lhe disse ter uma amiga em comum com ela.
Como era nova neste tipo de comunicação por mensagens, não desconfiou que do outro lado estava um scammer. “Ele disse que era de Austin, Texas, e que estava no Afeganistão em missão militar”, conta ao P2. A narrativa inventada indicava também que “estava divorciado” e que “a sua esposa o tinha traído enquanto esteve fora”. “Pareceu-me genuíno”, diz Laura B., e por isso não via motivo para deixar de comunicar com ele pela Internet. “Começou a bombardear-me todos os dias com mensagens e fotografias de flores e a dizer que estava apaixonado por mim”, acrescenta. Mais tarde, conta, diz-lhe que tinha de arranjar um avião privado para regressar aos Estados Unidos.
O problema, dizia-lhe o burlão, é que não havia bancos na zona onde se encontrava, ou seja, no Afeganistão. “Pediu se eu poderia emprestar-lhe 600 dólares americanos”, relata ao P2 numa conversa por telefone, num tom entre o triste e o indignado. O falso militar pedia para ela não se preocupar, pois iria devolver-lhe tudo, uma vez que tinha ganho muito dinheiro durante a guerra. E prometeu pagar-lhe depois “o dobro”, acrescenta Laura B. Pouco depois, pressionou-a para que lhe mandasse o montante mais cedo por via diplomática. Esperava, dizia, a visita de um diplomata dos EUA ao Afeganistão. “Eu concordei e levantei a quantia”, conta a burlada. Apesar de lhe ter dito que se chamava Edward Martin, pediu que enviasse o dinheiro para um homem com outro nome, no Gana.
Foi ao ler bem o endereço que ele lhe dera que lhe “soou a campainha”. Como que ainda a convencer-se a si própria de algo traumatizante, repete: “City Tamale, Country Gana”. “Usava o nome de um soldado norte-americano”, repete ao P2. “Porquê enviar o dinheiro para um país africano se o diplomata era americano?!”, perguntou-se então Laura B.
Já muito desconfiada de que tinha sido vítima de uma grande mentira, decidiu relatar tudo às autoridades locais. O esclarecimento da polícia não lhe deu, todavia, qualquer esperança de apanhar o criminoso e muito menos de recuperar o dinheiro: “[Os agentes] disseram-me que não tinham provas suficientes.” Revoltada, decidiu confrontá-lo via Facebook, acusando-o de estar a ser enganada. Nesse preciso momento, “ele eliminou todas as mensagens e nunca mais consegui falar com ele”, conta. Por seu lado, Laura, ainda triste com o que lhe aconteceu, contou ao P2 que também apagou todo o historial do “namoro” com o falso militar americano. “Não quis voltar a ler aquilo.”
Os casos disparam, as queixas não
Os cibernautas mais velhos “são um alvo fácil e frágil” da cibercriminalidade e de todos os outros crimes que envolvem meios informáticos, sejam computadores, tablets ou smartphones. O director da UNC3T lamenta que as queixas de fraude e burlas informáticas no geral sejam ainda pouco frequentes em Portugal. Até porque os casos têm vindo a crescer “exponencialmente” e “na mesma proporção que a própria utilização das novas tecnologias”, esclarece.
Apesar do aumento substancial de cibernautas com mais de 65 anos nos últimos anos, a comunicação social e as autoridades têm dado mais eco aos riscos dos utilizadores mais novos e aos ataques informáticos às empresas. Contudo, essa franja da população, vulgarmente chamada “terceira idade” tem vulnerabilidades específicas.
Num país como Portugal, onde essa faixa etária ultrapassa os dois milhões de pessoas, a sua representatividade “não é nada residual, bem pelo contrário”, refere Nuno Poiares, director do ICPOL-ISCPO (Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna) e subintendente da PSP. Por esse motivo defende que, na Internet, “a segurança dos idosos é um dos maiores desafios securitários do século XXI”.
Em Portugal, as mais altas autoridades nacionais relacionadas com a segurança e a protecção dos cidadãos tem dado sinais de que a cibercriminalidade está entre as suas preocupações. Há menos de um mês, na abertura do ano judicial, a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, referiu a necessidade do reforço dos recursos da Polícia Judiciária para dar resposta às complexidades da cibercriminalidade.
O gabinete do cibercrime da Procuradoria-Geral da República confirmou ao P2 que “mantém um contacto directo com os magistrados que dirigem a investigação criminal por forma a perceber as grandes tendências nas queixas que chegam ao Ministério Público no domínio da cibercriminalidade”. Em relação aos idosos, adiantou em comunicado escrito, o Ministério Público preocupa-se com a população mais idosa não tanto pelo número, mas antes pela sua vulnerabilidade.
Em termos legislativos, a preocupação da criminalidade contra os portugueses mais velhos, no seu todo, vem do fim do Governo de José Sócrates, em 2011. Em Agosto de 2015, o Conselho de Ministros (do Governo de Passos Coelho) aprovou uma resolução que veio agravar as penas dos actos criminosos contra idosos, entre os quais o “crime da burla informática e das comunicações” (artigo 221.º do Código Penal), que agrava a pena até aos dois anos de prisão. Aliás, nessa data, os crimes contra idosos passaram a ser todos “agravados”.
Em Novembro 2016, como já referido, criou-se a UNC3T na Polícia Judiciária que, de acordo com o seu director, tem vindo a formar pessoas nesta área. Mais recentemente, em Agosto do ano passado, a cibercriminalidade foi definida em Diário da República como um dos “crimes de prevenção prioritária” para o biénio 2017-2019.
Falta agora a harmonização das legislações dos Estados-membros da União Europeia que, no final de Maio, terão de provar que estão altura da Directiva NIS (Network and Information Systems) da UE, respeitante à cibersegurança nos sectores público e privado. Na mesma altura, está prevista a aplicação em pleno da Regulação da Protecção dos Dados Pessoais. As entidades reguladoras da cibersegurança dos respectivos Estados prevêem multar com severidade quem não reportar situações de ataques informáticos. Caberá a cada país articular as legislações nacionais com as normas europeias, os interesses públicos com os dos sectores privados (ver entrevista ao lado).
As vulnerabilidades dos mais velhos
A maior das vulnerabilidades dos cibernautas mais velhos é óbvia: chegam à Internet numa fase mais tardia da vida. “O esforço de adaptação ao meio é maior”, explica Carlos Cabreiro. Neste contexto novo e sempre em mudança, existe um “conflito geracional”, refere, mesmo entre as vítimas e os autores do crime, com benefício para estes últimos.
“Neste tipo de criminalidade informática (em grande escala), não se escolhe sequer a vítima”, elucida este director da Polícia Judiciária. Porém, acabam por ser os utilizadores mais idosos os que mais tropeçam nas armadilhas. Parece um paradoxo mas, em certa medida, é como se “a vítima também fosse ter com o crime”. “A vítima acredita”, continua Carlos Cabreiro, e “não utiliza outros meios de percepção para saber se está a falar efectivamente com a pessoa certa”.
Se, no contacto pessoal, as pessoas percebem mais facilmente que estão diante de uma tentativa de fraude ou burla, no mundo virtual “acabam por aderir mais facilmente”, adianta. Só numa “segunda fase” é que compreendem que estão a ser alvo de burla.
Para Graça Cabral, da Deco (Associação de Defesa do Consumidor), o “consumidor mais velho é o alvo preferencial das burlas em geral”, apesar de os registos não especificarem a faixa etária das vítimas, tal como acontece com a APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima). Recorde-se que as burlas, e entre elas a burla informática, foi o crime que mais cresceu no nosso país nos últimos 20 anos. O furto continua a liderar a tabela criminal. Frederico Marques, membro da direcção da APAV explica ao P2 que “a componente ciber” é uma realidade nova para esta associação, mais procurada para os casos de violência doméstica, mas garante conhecer as vulnerabilidades dos cibernautas mais velhos.
As situações que os levam a procurar a APAV têm sobretudo que ver com o phishing, “em que alguém recebe um email do banco, é reencaminhado para um site parecido com o original e dá os seus dados”, esclarece. Marques não tem dúvidas de que o factor etário fragiliza os utilizadores. Normalmente, são pessoas reformadas que se ligam à Internet “fora do ambiente de trabalho”. Logo, não têm nenhum colega ao lado com quem possam tirar uma dúvida. Por outro lado, quanto mais velhas são, “mais habituadas estão a confiar nas instituições, designadamente nas bancárias”. “Pertencem a uma geração que não duvida da idoneidade dos bancos.”
Velhos métodos, novos desafios
O célebre “conto do vigário” migrou para o ciberespaço, um território sem fronteiras e com outra característica: esconde a identidade e os rostos dos burlões. O modus operandi destas burlas é quase sempre inspirado nas técnicas tradicionais. “É vinho velho em garrafas novas”, ironiza Carlos Cabreiro. Só que agora, em vez de baterem à porta, os burlões apresentam-se em grande escala, com nomes falsos ou “clonados”.
“Através de uma história de cobertura, convencem outra pessoa a praticar determinado facto que normalmente diminui o seu património”, avança este investigador. Posteriormente, as vítimas vão sendo enroladas e manipuladas por alguém que nunca viram, mas a quem vão dando informações. Os desconhecidos, quanto mais sabem sobre elas, mais espaço de manobra ganham para as explorar. Isso pode começar com a resposta a um simples email, remetido por alguém que informa os destinatários a respeito de “heranças fabulosas” ou os convida a “participar num negócio muito lucrativo”, confirma o director da UNC3T.
“Estamos a falar de uma criminalidade que cria desconforto para a própria vítima porque tem subjacente uma ideia de ganância”, observa Carlos Cabreiro. Para ele, esse é “o principal motivo pelo qual a vítima nem sequer apresenta queixa”. Existe a vergonha de expor o golpe às autoridades ou mesmo dentro da própria família. E também de mostrar documentos que possam fazer prova do crime, dado que uma vez estabelecida uma relação de mais ou menos confiança com o burlão, podem existir aspectos privados ou até íntimos.
No caso dos cibernautas reformados ou que vivam sozinhos, as medidas de prevenção são mais difíceis de implementar, ao contrário das campanhas feitas junto das escolas, refere Cabreiro. “Já fomos a centros de idosos, mas não há organizações, os mais velhos não estão associados”, lamenta. O subintendente da PSP, Nuno Poiares, confirma que já têm sido feitas acções junto das escolas e que tem sido sobretudo as faixas etárias mais jovens o alvo das preocupações e das acções de prevenção. “Confesso que para os idosos não conheço nada feito pelo Governo”, diz ao P2. Uma solução poderá passar pela existência da figura de “guardião”, alguém “capaz de impedir o crime, como por exemplo forças de segurança, videovigilância, auxiliares de acção educativa, pais, segurança privada, etc.”, sugere Nuno Poiares.
Para Carlos Cabreiro, a actuação preventiva “terá de ter uma vertente humana”, criando uma “cultura de conhecimento informático e de segurança entre as pessoas”, bem como a realização de “alguma convenção dentro dos meios de comunicação social (...), que tem também um papel importante”.
“Sabemos que existem perigos e o facto de estarmos em frente a um computador não quer dizer que estejamos mais seguros. Temos de evitar comportamentos de risco”, explica. “Devemos ter na Internet os mesmos cuidados que temos na vida real”, resume o director da PJ. Os riscos existem sempre, mas para ele “é fundamental saber separar a vida real da vida virtual”. “Ninguém anda na rua com tudo à mostra nem de carteira aberta.”