O espírito de Hué mora na ponte Thanh Toan

Há 50 anos, no último dia de Janeiro de 1968, o exército vietcongue lançava a chamada ofensiva do Tet, em pleno ano novo vietnamita. A cidade de Hué, antiga capital imperial do Vietname, ficou arrasada em menos de um mês. Hoje, renascida das cinzas, é uma das cidades mais agradáveis do Vietname.

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Thien Mu é um dos mais populares templos budistas de Hué e fica um pouco afastado do centro, na margem do Song Huong, o rio Perfume. O trajecto de barco — ou de bicicleta pela margem norte do rio — desde a velha ponte metálica de Truong Tien é um dos melhores itinerários que se pode traçar nesta cidade onde a natureza nunca se aparta do horizonte. Para montante, o cenário é um dos postais recorrentes da cidade, o rio em primeiro plano e lá ao fundo, na distância, a cadeia de montanhas que atravessa o país de norte a sul, a cordilheira anamita.

Subimos os degraus do largo escadório, guardado por quatro colunas decoradas com caracteres chineses a fazer de pórtico, até ao pagode do Thien Mu. As montanhas azuis lá estão ao fundo, a coroar o copioso verde das florestas que trepa como gigantesco musgo pelas vertentes. Rente aos pés do templo, desliza o rio Perfume, navegado por barcaças de pescadores e de turistas, quadro que se transfigura num teatro de sombras quando a luz do crepúsculo desce sobre a outra margem.

Não é difícil dar com este idílico cenário de montanhas — que faz lembrar uma clássica pintura de paisagem chinesa — numa dessas velhas imagens do tempo da guerra do Vietname — ou da guerra americana, como definitivamente a catalogam os vietnamitas. É uma imagem de carregado preto e branco que mostra colunas de fumo esbranquiçado a subirem no ar como se saíssem do ventre das montanhas e em primeiro plano o rio com os seus compridos barcos de madeira.  Os novelos de fumo são libertados pelas explosões de bombas de napalm largadas pela aviação norte-americana durante um ataque vietcongue em 1963.

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Anos depois, fez agora 50 anos, numa madrugada dos finais de Janeiro de 1968, da montanha descia uma barragem de fogo de artilharia que marcava o início da ofensiva do Tet na cidade, um ataque de surpresa dos exércitos do Vietname do Norte e dos vietcongues. Foi também o prólogo da longa batalha de Hué, um episódio que levou os exércitos em campo a confrontos casa a casa — “home to home, room to room”, especificava o então coronel Stanley Hughes, que liderou a reconquista da cidade pela aliança do sul. Full Metal Jacquet, o filme de Stanley Kubrick inspirado na batalha de Hué, encena esse cenário subitamente novo na guerra, de “close combat” num espaço urbano.

A batalha, uma das mais duras e longas do conflito,  durou vinte e cinco dias e, no final, após a retirada dos exércitos vietcongue e norte-vietnamita, Hué era um abismo de escombros e havia para cima de cem mil pessoas desalojadas — fora as vítimas, entre os habitantes, de um massacre perpetrado pelos vietcongues. A cidadela imperial ficou bastante danificada e a sua reabilitação foi um (quase) prodígio, porque levada a cabo em relativamente pouco tempo e num período de enorme esforço de reconstrução de um país extenuado por duas guerras seguidas (primeiro com os franceses, a Guerra da Indochina, e depois com os norte-americanos e respectivos aliados).

1993 foi o ano em que a UNESCO decidiu integrar o património histórico de Hué na sua lista, juntamente com uma série de outros monumentos dispersos pelos arredores da cidade, como o Thien Mu, palácios e sumptuosos túmulos imperiais. Bastava esse legado, renascido das cinzas de (mais) uma guerra insana, para justificar a viagem até Hué. Mas à antiga capital imperial do Vietname vai-se também como quem procura a sombra de um oásis: entre o torvelinho dos grandes espaços urbanos vietnamitas, Hué é a cidade improvável, conciliando uma impressiva dimensão humana, marcas históricas notáveis, gente de amplos gestos fraternos, uma atmosfera rural à distância de uma breve jornada de bicicleta e a aura de se ter recomposto de uma temporada no inferno.

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Notícia da cidade púrpura

A imagem do oásis não exclui Hué do figurino dominante das cidades vietnamitas: vagas de motociclos e bicicletas a regurgitarem passageiros e cargas, uma efervescência de tráfego que parece não ter fim e que se rege (eficazmente) por regras secretas, muitas vezes sem linhas pintadas no asfalto, sem semáforos nem agentes sinaleiros. Mas em Hué lida-se bem com a escala dessa vertigem — e, além do mais, o coração da cidade palpita numa área que se pode percorrer a pé, sob a sombra de árvores e sempre com uma esplanada por perto onde engolir um batido de frutas ou uma cerveja para iludir o bafo tropical. A bicicleta, experiência oriental tão icónica como os chapéus dos camponeses, fica para as jornadas aos arrozais que povoam as margens do Song Huong.

A cidadela e os túmulos imperiais de Hué: o velho Vietname comunista (mas que resta do comunismo naquele que passa por ser um dos últimos países comunistas do mundo?) puxa o lustro às memórias do país imperial e feudal, cujo ocaso se deu, afinal, há pouco tempo. O imperador Bao Dai abdicou em 1945 quando o país se partia em dois e no horizonte se começava a perfilar uma era de grandes convulsões, um longo período de conflitos bélicos que só terminaria em 1975 com o fim da guerra americana.

A Da Noi, a cidadela, guarita do imperador e do seu cortejo de esposas e concubinas (ah!, a matriz chinesa que atravessa toda a cultura vietnamita!), guardada por vastas e robustas muralhas, é uma parte da cidade, na margem norte do rio. Era conhecida como a “Cidade púrpura proibida” e chegou a acolher meia centena de edificações, incluindo um teatro exclusivo do imperador e palácios para residência dos membros da família real e das concubinas, que eram habitualmente recrutadas entre as filhas dos mandarins, como se pode ler, entre um mar de outras curiosidades, em Life in the Forbidden Purple City, de Ton Thai Binh, uma publicação à venda nas livrarias de Hué.

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A cidadela já não é imperial

Ainda há imenso por restaurar na cidadela, que sofreu danos também durante a época colonial, mas a área classificada pela UNESCO exige pelo menos um dia de visita, a não ser que nos limitemos ao Thai Hoa, onde está a magnífica sala do trono do imperador e ao Trong Sanh, o Palácio da Longevidade. A solenidade destes espaços, reabilitados com técnicas de restauro japonesas, tem um contraponto que esclarece — ou não... — como Hué e o Vietname actual se relacionam com um certo passado: na “sala de vestir do imperador”, congeminada num pavilhão ao lado, visitantes locais, famílias inteiras, abandonam-se a turísticas distracções alugando vistosos trajes imperiais e simulando as respectivas poses durante fugazes minutos, os suficientes para ficarem imortalizados em fotografia, sentados numa “réplica” simplificada do trono. A cidadela já não é, definitivamente, imperial.

Numa área vizinha de espaços verdes que rodeiam a muralha do lado leste, onde começa uma zona habitada, há outros atractivos, como um impressivo museu real de antiguidades, cheio de mobiliário e toda a sorte de objectos decorativos e pessoais da casa imperial, e um punhado de carcaças de veículos militares norte-americanos, artilharia, carros de assalto, aeroplanos.

Há uma característica essencial da cidadela, a dos critérios da sua edificação, dos quais a leitura das explicações livrescas dificilmente nos dará inteira conta. Mr. Vui, guia informado — certas visitas podem recolher grande vantagem desta opção — mostra o que só in loco se pode ver com clareza e propriedade. O imperador determinou a construção da cidadela e dos palácios em função de regras que os relacionam com elementos da paisagem (a matriz cultural dos vizinhos do norte, uma vez mais), de forma a garantir uma harmonia com os elementos naturais, uma colina, o rio, os pontos cardeais, as cores, etc. O mesmo aconteceu no planeamento dos túmulos imperiais, impressionantes testemunhos das artes arquitectónicas e escultóricas vietnamitas.

Um estrangeiro à mesa

Dung interrompe o almoço, pousa a colher ao lado dos pauzinhos que o auxiliam na tarefa de comer uma farta sopa, a local bun bo Hue, dá um estalido com os lábios e pergunta com ar estudadamente circunspecto: “Por que é que vocês, estrangeiros, comem sempre com a boca fechada e nunca fazem sequer um barulhinho?”

No Ngoc Binh Hotel, um simpático alojamento localizado num beco da Nguyen Tri Phuong, mesmo no centro de Hué, a gestão do negócio é assunto familiar, da esposa do senhor Dung, do irmão, da mãe e da sogra, coisa de várias gerações a meter mãos à obra todos os dias para assegurar a felicidade e o nirvana dos hóspedes. Convidado para almoçar com a família, lembrei-me logo de um convite semelhante umas semanas antes em Hoi An, o velho entreposto comercial onde viveram jesuítas portugueses no século XVI, numa altura em que a povoação aparecia nos mapas como Faifo. A pousada lá chama-se Hong Cong Homestay e o senhor Hong, o anfitrião, tem o hábito de obrigar regularmente todos hóspedes a comparecerem a um jantar colectivo no quintal — e é mesmo difícil escapar, já que o senhor Hong costuma andar muito atento aos movimentos dos estrangeiros, ainda que discretamente, de forma a não falhar uma única vez o exercício da hospitalidade...

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Voltando à mesa da cozinha do Ngoc Binh, o senhor Dung faz questão de explicar bem a razão da pergunta, à vista dos olhares inquiridores da família, paciente na espera da tradução do falatório para a língua vietnamita. “É que nós quando estamos a gostar da comida fazemos sempre barulho a comer!” Tomada a lição em conta, o estrangeiro faz o melhor que consegue, adequa quanto pode a mastigação e acaba aplaudido como um herói.

Este Dung, tal como a família, é muito prestável em tudo quanto o solicitam e ninguém dirá que difere da demais gente de Hué — e nem sequer é preciso ir muito longe, atravessa-se o beco, uma azinhaga onde mal cabe um carro, atafulhada de motoretas, e estamos no Cafe on Thu Wheels, um pequeno restaurante muito popular entre viajantes “independentes” — tão popular que nem no tecto da sala sobra campo para mais mensagens ou desenhos saciados e agradecidos. A comida vietnamita é boa, recomenda-se; a gente da casa e os batidos de fruta também. E, como em tantos sítios onde se come e dorme nestas paragens orientais, seja o vizinho Ngoc Binh ou outras pousadas, quase não precisamos de mexer uma palha para ter os bilhetes de comboio ou de autocarro, o riquexó à hora em que estiver a fazer falta ou um guia em pessoa para nos ir mostrar as maravilhas chinesas do feng-chui na cidadela.

Quem sabe que teoria se pode arrancar daí! Talvez nenhuma, que tudo é negócio. Ou talvez não. Ou talvez “talvez”, em vez de “talvez não”, seja mais justo por deixar viver o benefício da dúvida num mundo em que o coração se aferrolha tanta vez no escrínio do preconceito e do pé atrás. Talvez, enfim, até nisso, nesse acolhimento, Hué pareça uma cidade improvável num país onde a capital se descobre a abarrotar de agências de viagem, restaurantes, empresas de táxis e hotéis homónimos...

Ao fim de uma semana e mais dois almoços mastigados com uma boa banda sonora na cozinha familiar do Ngoc Binh Hotel, chegou o dia em que Dung se dispôs a pedalarmos juntos pelo campo fora, entre terrenos preparados para a sementeira do arroz e o curso do Song Huang. Era um bom plano, mas Dung, misteriosamente, mudou de ideias e acabámos por seguir no sentido inverso, até à aldeia de Thuy Thann, a meia-dúzia de quilómetros do centro. Dung quis mostrar uma ponte de madeira que sobreviveu a guerras e a enxurradas do rio, a ponte Thanh Toan, que tem mais de dois séculos e meio.  É uma ponte coberta, de estilo japonês, que simboliza extraordinariamente o espírito de Hué.

No regresso, abancámos naquela espécie de piquenique que anima os fins de tarde de Hué nas margens do rio Perfume. Ali, junto à ponte de Truong Tien, onde há acácias de flores rubras e onde andam suspensos pelos ares os odores da mais colorida comida de rua do Vietname.

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