Período Sócrates-Pinto Monteiro foi o “mais negro” da Justiça
Sindicato dos procuradores apresenta este sábado, no seu congresso na Madeira, um livro sobre a história do Ministério Público. Ex-presidente João Palma fala de cumplicidades entre o poder político, altos magistrados e juízes para proteger os mais poderosos e influentes.
Uma crítica feroz ao mandato de Pinto Monteiro como procurador-geral da República e à “tentativa de manipulação” do poder judicial protagonizada pelo Governo de José Sócrates é o que se destaca num dos depoimentos do livro Sindicalismo na Magistratura no Ministério Público - Motor Histórico da sua Dignificação, editado pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP).
A obra, assinada por António Bernardo Colaço, juiz jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, percorre a história do Ministério Público (MP) pós-25 de Abril, arrancando com testemunhos dos sucessivos presidentes do SMMP. É aqui que João Palma, que liderou o sindicato entre 2009 e 2012, se debruça sobre o que diz ter sido o “período mais negro” da história do Ministério Público democrático.
“Viviam-se tempos muito conturbados decorrentes da política de ostensiva hostilização e despudorada tentativa de manipulação das magistraturas e do poder judicial pelo Governo de Sócrates”, escreve João Palma, apontando ainda o dedo ao então procurador-geral da República, Pinto Monteiro.
“Muitas vezes disse, digo-o agora publicamente, com mais propriedade e menos receios de chocar os mais distraídos, que tínhamos a dirigir o Ministério Público o nosso pior inimigo!”, acrescenta o antigo presidente do SMMP, que é procurador da República no Tribunal de Comércio de Lisboa, sintetizando: “O mandato de Pinto Monteiro constituiu, seguramente, o período mais negro da história do Ministério Público democrático. Por todas as razões, umas vindas a público, porque o tempo se encarregou de as evidenciar, outras ainda desconhecidas da maioria.”
Ao PÚBLICO, João Palma prefere não pormenorizar essas razões “ainda desconhecidas” dos portugueses, por “não as conhecer a fundo”. Mas, adianta, espera que se faça história. “A história tem sido feita. Ainda hoje [Operação Lex], a história está a ser escrita”, diz, amplificando as críticas expostas no livro, que será apresentado no próximo sábado, no decorrer do XI Congresso do Ministério Público, que se realiza no Funchal.
"Regime socrático" e a sensação de impunidade
“Houve uma tentativa do regime socrático em condicionar muito a actuação da justiça. Agora é evidente o porquê”, diz falando de uma sensação de “impunidade” que existia entre os “mais poderosos e influentes”, e que agora acabou. Esse período, clarifica, coincidiu com o relacionamento próximo entre o primeiro-ministro José Sócrates, o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, e o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento.
Foi a altura do caso das escutas do processo Face Oculta que continham conversas entre Armando Vara e José Sócrates. Pinto Monteiro desvalorizou-as e viriam a ser destruídas por ordem de Noronha de Nascimento.
Já no livro, João Palma aborda esse episódio, concluindo que as “tentativas de domínio do poder judicial” pelo executivo de Sócrates tiveram “relevantes cumplicidades”. Não só no interior do Ministério Público, como também nos juízes “ao mais alto nível”.
Logo no início do depoimento, Palma admite as dúvidas que sentiu em candidatar-se ao cargo, pois tinha consciência das “condições adversas”. Mas, justifica, era “imperioso resistir” aqueles que confessavam querer “partir a espinha” aos magistrados. Uma expressão, recorda ao PÚBLICO, atribuída a Sócrates. Acabou por aceder, perante a recusa de outros potenciais candidatos, e pela “tentação” de enfrentar o “delicado” desafio que se apresentava.
“A ‘aliança’ entre um governo maioritário – que assentava a sua política para a Justiça na tentativa de manipulação do poder judicial e de descredibilização das magistraturas – e o topo das magistraturas, exigia uma reacção forte e determinada”, escreve João Palma, num texto onde regressa à tese de que os órgãos de polícia criminal deveriam ser tutelados pelo Ministério Público (só assim será verdadeiramente autónomo do poder político, considera).
Uma argumentação, diz, que continua válida. "Será interessante estudar, a propósito da chamada Operação Marquês, a razão pela qual o Ministério Público se viu na necessidade de afastar a Polícia Judiciária (PJ) da investigação, recorrendo à Autoridade Tributária”, sustenta, dizendo ao PÚBLICO que existe uma “clara falta de confiança” do MP na Policia Judiciária. “É [a Operação Marquês] um caso elucidativo que dá que pensar. Curiosamente ninguém questiona a liderança da PJ.”
Mas, destaca, houve uma evolução positiva. Se no período em que liderou o sindicato o MP e as polícias dirigiam a sua acção para a investigação da “grande massa de desprotegidos e menos afortunados”, excluindo da acção penal “os mais poderosos e influentes”, agora notam-se mudanças. “Iniciaram-se entretanto investigações ao mais alto nível, que puseram a nu os verdadeiros problemas do país, as ligações entre o poder financeiro e o poder politico, os negócios estrondosos para satisfação de interesses pessoais ou de grupo, com prejuízo para o erário público e o cidadão contribuinte”, argumenta João Palma, dizendo que só assim a imagem “desacreditada” dos tribunais e dos magistrados pode ser recuperada junto dos cidadãos.
A esta mudança de paradigma, continua João Palma, não é a alheia a entrada de Amadeu Guerra no Departamento Central de Investigação e Acção Penal. Palma elogia-lhe a competência, a isenção e a capacidade de liderança. “Começam a ser unanimemente reconhecidos, com excepção dos que se consideravam impunes”, aponta.
Sócrates e Pinto Monteiro não comentam
Ao PÚBLICO, tanto José Sócrates como Pinto Monteiro recusaram comentar as acusações de Palma. Sócrates não quis, para já, pronunciar-se. Pinto Monteiro respondeu o mesmo. Mas se o ex-procurador-geral da República não comentou o conteúdo, não deixou o mensageiro sem resposta. “Ele [João Palma] ter chegado onde chegou, é o triunfo da mediocridade do Ministério Público”, reagiu Pinto Monteiro.
João Palma é dos antigos dirigentes do SMMP o mais crítico daquele período no livro, mas não é o único. Rui Cardoso, que presidiu ao sindicato entre 2012 e 2015, e mesmo António Ventinhas, actual presidente, falam de ataques ao Ministério Público.
O primeiro sublinha a necessidade de resistência, face aos que se sentem incomodados pela “separação de poderes” e que querem controlar a Justiça “para continuar acima dela”. É preciso, defende Rui Cardoso, resistir àqueles que, controlando os demais poderes do Estado, querem controlar também a Justiça. Uma das formas, aponta o antigo dirigente do SMMP, é partilhar o espaço mediático sempre que o MP seja atacado com o intuito de descredibilizar todo o sistema de justiça. “Ao SMMP cabe fazer o contraditório nessas campanhas. Não por qualquer interesse corporativo, mas sim em defesa do próprio sistema de justiça”, escreve.
António Ventinhas, no contributo que dá ao livro, também recorda os processos mediáticos que envolveram um ex-primeiro-ministro e antigos ministros. “Quando o Ministério Público e os colegas que estiveram envolvidos nessas investigações foram atacados por diversas formas, o SMMP esteve sempre na primeira linha para os defender, independentemente das consequências”, escreve, dizendo que para os inimigos do MP o sindicato é incómodo. “
“Desde sempre, os inimigos do Ministério Público quiseram limitar a actuação do SMMP e impor a ‘lei da rolha’, de modo a veicularem no espaço público a sua verdade, sem direito a contraditório, ofendendo assim os princípios elementares de uma sociedade democrática, pluralista e que protege o direito à liberdade de expressão”, alerta Ventinhas, no livro que será apresentado pelo juiz-conselheiro Guilherme da Fonseca, fundador e ex-presidente deste sindicato.