Rose McGowan lança o primeiro livro e a primeira série sobre o "monstro" Weinstein
A história de uma vida, e de um ataque contra um “monstro” e uma “máquina”: Harvey e Hollywood. Memórias Brave, em que a actriz descreve pela primeira vez o alegado ataque do produtor, são editadas esta terça-feira. Série Citizen Rose chega a Portugal na segunda.
Uma das vozes mais zangadas do momento #MeToo produziu o primeiro livro e a primeira série televisiva directamente saídos do escândalo Weinstein. Brave, as memórias de Rose McGowan em que detalha pela primeira vez a sua alegada violação pelo produtor, foi lançado esta terça-feira nos EUA e no Reino Unido, e a série documental Citizen Rose estreia-se em Portugal no canal E! na próxima segunda-feira. São os dois primeiros produtos culturais da era #MeToo, que falam do “monstro”: Harvey, mas também Hollywood.
“Se eu tivesse lido as novas memórias de Rose McGowan, Brave, no vácuo, sem os feitos do jornalismo de investigação que derrubaram o antigo líder da Miramax Harvey Weinstein, teria pensado que eram transtornadas e paranóicas”, começa Michelle Goldberg na sua crítica ao livro no New York Times. A sua história é tortuosa, e a sua voz, como se ouve no primeiro episódio (duplo, de duas horas) da série, que o PÚBLICO já viu, é torturada. Rose McGowan, estrela que despontava no final dos anos 1990 e que viu a sua carreira cinematográfica descarrilar, tornou-se num dos rostos mais aguerridos, e emocionalmente destabilizados, da vaga de denúncias encetada com Weinstein e que levou muitos alegados (e alguns já confessos) predadores e assediadores no seu encalço.
Em 2016, Rose McGowan já tinha alegado ter sido violada por um poderoso homem de Hollywood. Mas a 8 de Outubro, três dias depois da primeira investigação do New York Times e no mesmo dia em que o diário publicava novo trabalho com nomes cada vez mais sonantes que dizem ter sido vítimas do temido produtor e distribuidor, de Lupita Nyongo’o a Angelina Jolie, McGowan diz no Twitter que Weinstein foi o seu alegado violador. Tinha falado com o jornal para a investigação inicial mas devido a um acordo de confidencialidade que assinou, não detalhava o seu caso ao diário – que escreveu ainda assim que em 1997 Weinstein chegou a acordo com a queixosa e lhe pagou 100 mil dólares, ressalvando que tal acordo “não devia ser visto como uma admissão” de culpa.
Começou aí uma campanha, sobretudo na sua conta no Twitter (do qual chegou a ser suspensa) em que McGowan apontou dedos até aos mais aparentemente impolutos, como Meryl Streep, aos poderosos, como Jeff Bezos da Amazon, ou aos colegas, como Ben Affleck, e se tornou uma porta-voz imperfeita do movimento anti-assédio. Ou, como lhe chama Vanessa Thorpe no semanário The Observer, um dos “catalisadores”, uma “instigadora chave” da "revolução #MeToo". A sua história, do quarto de hotel até ao temor de ser alvo de sabotagem da sua carreira ou de espionagem, que uma investigação posterior da revista New Yorker revelou ser generalizada em torno das alegadas vítimas do produtor, tinha todos os ingredientes padronizados do caso Weinstein.
Mas as suas obras agora lançadas, escassos quatro meses depois desta viragem cultural, querem ir mais longe. “Para mim, ele representa-os a todos”, aos monstros que vê na indústria do cinema, essa “máquina, os fabricantes do mito, os próprios abusadores que fazem as vítimas duvidarem da sua percepção, os homens sagrados de Hollywood”.
Entre os dois registos, livro e série, há frases repetidas. E silêncios também. O nome “Harvey Weinstein” nunca é proferido – é “o monstro” ou até um depreciativo “ananás derretido” em Brave, e um borrão ou uma imagem cortada na série do canal de Keeping up with the Kardashians cujo registo nada tem de glamoroso. É um livro “furioso”, escreve Goldberg, escrito ao longo de três anos, e uma série que começou a ser filmada em Outubro, quando das primeiras revelações pelo New York Times, e que a acompanha em palestras, manifestações, reuniões de vítimas de violência doméstica e sexual. “Causo-vos desconforto? Ainda bem”, interpela o espectador.
"Senti-me tão suja"
Em 1997, a sua carreira despontava e o trabalho com o homem que financiou e distribuiu Pulp Fiction motivava uma convocatória para uma reunião durante o Festival de Sundance, Meca do indie americano. Ia contrariada pela escolha do local, que inicialmente era um restaurante e passou para o quarto do produtor, e disse-o a um dos seus representantes – que lhe respondeu que tinha de mostrar respeito pelo poderoso produtor. Subiu à suite do andar cimeiro de uma estância luxuosa e, como detalha agora em Brave, conversaram durante cerca de meia hora sobre a sua carreira. Vinha de Gritos (1996), da Miramax, e promovia Going All the Way, com Ben Affleck.
De repente, escreve, foi agarrada e despida junto ao jacuzzi e violada por Harvey Weinstein, que dois anos depois subiria ao palco dos Óscares para receber o prémio de Melhor Filme por A Paixão de Shakespeare – a sua estrela, Gwyneth Paltrow, também receberia um Óscar e em Outubro juntou a sua voz às das acusadoras de Weinstein.
Rose McGowan tinha 23 anos e diz ter usado a mesma estratégia de sobrevivência de Asia Argento numa situação similar com Weinstein – não oferecer resistência, temendo-o física e profissionalmente – e lembra-se de, a seguir, ter sido posta num carro directamente para desfilar numa passadeira vermelha. “Senti-me tão suja. Tinha sido tão violentada e estava triste até ao centro do meu ser.” Seguiram-se anos em que se sentia vigiada, em que tentou apresentar queixa, ou falar sobre o assunto, e diz ter sabido que o produtor tinha começado a espalhar no meio que não devia ser contratada. O seu trabalho no cinema diminuiu, e hoje as suas alegações ganham contexto com as investigações da New Yorker, por exemplo, que deram como provada a existência de uma rede montada por Weinstein para espiar, conter e descredibilizar as suas alegadas vítimas.
“Grande parte de Brave é como ler o diário de uma mulher quase levada à loucura por homens abusivos que presumem que ninguém lhe dará ouvidos”, escreve Michelle Goldberg no New York Times. A reacção de McGowan contra “o monstro” que diz ter tido "amarrado" a si “durante 20 anos” e contra “a máquina” durou anos, muitas vezes sem ser verbal. Diz no livro que saía para a rua com a caracterização de cenas da série As Feiticeiras (1998-2006) ainda posta, cheia de aparentes feridas e sangramentos, para ver como reagiriam as pessoas, no mundo real, ao ver uma mulher que parecia ter sido espancada. Cita o Guardian: “Ninguém nunca perguntou [se me podia] para ajudar. Nem uma vez”. Desviavam o olhar, diz, e continuavam.
A obra reflecte, como de umas memórias só se poderia esperar, o percurso de vida da actriz antes e depois do evento Weinstein. E que, segundo ela, a tornou no alvo ideal, uma vítima com parca capacidade de reacção – cresceu no seio de uma seita (Children of God, que defendiam a poligamia, usavam as suas jovens acólitas para seduzir novos membros e que estavam prestes a integrar o abuso de menores quando os seus pais decidiram desertar), e depois do divórcio dos pais acabou por fugir de casa aos 13 anos, tornando-se toxicodependente e tendo períodos em que foi sem-abrigo. Uma relação longa com um menino rico em Los Angeles tornou-se abusiva, à imagem do que o pai lhe infligira – e depois, Hollywood, o outro culto da sua vida.
Como descreve a Vanity Fair após a leitura do livro, Rose McGowan fala a partir de um lugar de profunda dor e revolta que por vezes mistura relatos das suas experiências de assédio no plateau com situações de filmagem de uma cena de um casamento que lhe “roubou a verdadeira experiência” –e que podem desequilibrar a leitura do problema sistémico que quer denunciar. Agora, no livro, ataca também o ex-namorado Robert Rodriguez, com quem filmou em 2007 uma cena de violação nos filmes Grindhouse, financiados e distribuídos por Weinstein, com o realizador a dizer que a apoia mas também que ela teve tempo para se negar à participação.
Por um lado, com estes dois títulos que lhe dão um protagonismo na cultura que há muito perdeu, pode dizer-se que Rose McGowan está a capitalizar o momento #MeToo; mas também, na óptica do empoderamento e da voz e carreira que diz lhe ter sido roubada, que está a tornar a sua história num produto do qual ela beneficia pela primeira vez e sobre o qual tem controlo como protagonista e produtora. “Nunca mais ninguém iria pôr-me de novo nas ruas, e ser sem-abrigo era uma sentença de morte. Sabia que se morresse seria lembrada por ter revelado o meu violador, mas não pelos meus feitos. Não queria o nome dele ao lado do meu no meu obituário”, cita o Guardian. “Ele devorou tantas das nossas almas”, disse à Vanity Fair.