A cultura do “alarme: mãe à vista!”
A Starbucks acaba de anunciar que vai passar a pagar licenças parentais aos seus trabalhadores pagos à hora. Ou seja, às mulheres e homens com salários mais baixos e sem vínculo laboral. Será a semente de uma revolução?
Os americanos chamam-lhe “mommy track”, o que dá o tom certo à cultura do chefe que olha para as suas equipas e fareja, à distância, quem está em “fase pré-mamã”. Não é preciso muita perspicácia. Andam nos 30/35 anos, são casadas ou “unidas”. Não tardará, vão engravidar, pedir uma licença de cinco meses, mais férias, seguidos de horário reduzido para amamentar e, quando tudo parece prestes a normalizar, a criança vai ter febre.
Algumas empresas dos Estados Unidos, onde os direitos laborais estão bastantes degraus abaixo de Portugal, já pagam o congelamento de óvulos às suas funcionárias. Isso é verdade no Facebook, na Apple e no Google, que assim se colocam num pódio de avant-gard laboral e afirmam não pensar só no lucro, mas também na qualidade de vida dos trabalhadores. Depois das massagens gratuitas, da comida saudável gratuita e dos serviços de lavandaria gratuitos, subiram a parada e pagam até 20 mil dólares pelo congelamento de óvulos. O debate sobre se isto é bom ou mau não é óbvio. Há quem o veja como uma conquista dos direitos das mulheres (que ganham mais liberdade para decidir quando querem ser mães) e uma “revolução” só comparável à pílula. E há quem veja apenas uma coisa: é bom para a empresa.
Não vejo como adiar as gravidezes beneficie uma empresa, a não ser, claro, que as mulheres que congelam os óvulos acabem por sair e sejam mães já na empresa de outro patrão. Caso contrário, a empresa que pagou o tratamento vai acabar por enfrentar os custos do “mommy track” — agora ou daqui a dez anos. Por outro lado, esta é a realidade actual. No Ocidente, as mulheres têm filhos cada vez mais tarde. Pela primeira vez na história americana, as mulheres com 30 anos têm mais bebés do que as mulheres com 20.
Há talvez uma terceira via (não é o filósofo Daniel Innerarity quem diz que são os moderados que mudam o mundo?). Porque é que as empresas não fazem o novo, mas também o velho, e pagam o congelamento de óvulos mas aplicam medidas do século XX como a flexibilidade de horário, o part time e a redução salarial?
Conhecemos bem a cultura do “alarme: mãe à vista!” e os chefes e patrões que contribuem para impedir que as mulheres integrem o mercado de trabalho em pé de igualdade por causa da coisa mais natural do mundo que é ter um bebé. As mulheres que não são contratadas numa entrevista de emprego porque estão grávidas, as que são despedidas quando nasce a criança, as que não recebem bónus anuais porque “claramente” valorizam mais a família do que a empresa, as que são olhadas como "privilegiadas" porque reduziram o salário para poderem sair mais cedo e acompanhar o início de vida do seu bebé.
Baralhadas nas suas convicções, há até mulheres que, reclamando para si o rótulo de “boas feministas”, não resistem aos tiques do velho mundo e aplicam as fórmulas do tempo em que as mulheres estavam fora do mercado de trabalho e estas chatices todas não existiam.
Estudos ambiciosos, que acompanharam as pessoas das amostras ao longo de anos, mostram que as mulheres que têm filhos perdem entre 20% a 30% do salário. Agora que os homens também já tiram licenças de paternidade, percebeu-se que lhes acontece o mesmo. Quando passam umas semanas a mudar fraldas, eles também perdem salário e promoções. E aqui pode bem estar a semente de uma mudança importante.
Para já, neste mundo em que o trabalho como o conhecemos está em vias de extinção, as boas notícias são mais prosaicas: alguns gigantes americanos estão a dar mais apoio a quem tem filhos — não menos. É para aqui irrelevante se chegaram lá por desespero e por perceber que estão a ficar sem força de trabalho, como é há muito antecipado por pessoas como George Friedman, o célebre estratego. O facto é que a IBM, a Walmart ou a Amazon já pagam licenças parentais (entre as 20 e as seis semanas) não apenas aos seus trabalhadores com salário fixo e uma relação contratual, mas também aos trabalhadores a quem pagam à hora, em regra pessoas das classes sociais mais baixas. A Starbucks juntou-se agora a esta nova tendência e passou a pagar seis semanas de licença parental aos trabalhadores a quem paga à hora. E António Guterres anunciou que, pela primeira vez nos 73 anos da ONU, o "executivo" do secretário-geral atingiu a paridade: em 44 chefes de topo, 23 são mulheres. Mas um relatório do Fórum Económico Mundial avisou que vão ser precisos 217 anos para acabar com as disparidades salariais entre homens e mulheres. É por tudo isto que é seguro dizer pelo menos uma coisa: não é com discussões espúrias sobre toques no joelho debaixo da mesa que ganharemos mais igualdade.