Cavalos de corrida
Do que falamos quando falamos dos Óscares? De tudo menos dos filmes. E isso é um problema.
Do que é que estou à espera quando sei dos Óscares? (E espero que o leitor, por uma vez, possa perdoar esta “personalização” de uma crónica.) O mesmo que espero de um filme que está nomeado para um qualquer prémio: que me obrigue a descobrir filmes em que, de outra maneira, eu não teria reparado (e este ano Foge, de Jordan Peele, que foi visto como “apenas” um filme de terror quando se estreou entre nós, pode ser um bom exemplo), ou que me obrigue a olhar para eles de outra maneira.
Mas, com os Óscares, já não consigo fazer isso. A máquina de promoção da indústria de Hollywood já não o permite, com os seus tambores que começam a ouvir-se ao longe seis meses antes da cerimónia, com as pré-nomeações e listas da crítica e prémios menores e maiores em que toda a gente quer ver augúrios de vitória. Já não consigo olhar para os Óscares com surpresa, e, sobretudo, com tanto ruído à volta dos prémios, já não consigo olhar apenas para os filmes sem os ver à luz do que podem (ou não) representar nos Óscares.
Quando olho para a lista que foi divulgada à hora de almoço de terça-feira em Lisboa, e vejo as estranhezas que (para quem não acompanha o cinema com a minha regularidade) pareceriam surpresas, recordo-me de que muitos de nós cresceram a acreditar na imagem que Hollywood nos vendia: estes eram “os” melhores filmes que a indústria tinha. E isso até podia ter sido verdade nos anos 1950, 1960, 1970 (mesmo que um olhar mais ou menos desapaixonado pelas listas dos vencedores nos tire de cuidados).
Mas numa Hollywood como a de hoje, em que a Disney vive dos franchises criados na Marvel e na Lucasfilm, em que os grandes estúdios passaram a fazer outsourcing dos filmes de prestígio que são maná para os Óscares a produtores externos, em que é o marketing cuidadosamente trabalhado ao longo de meses que dispõe as peças nos tabuleiros, já não é verdade que os Óscares representem “o melhor da indústria”. Nem poderão voltar a fazê-lo tão cedo – quando vemos A Hora mais Negra, de Joe Wright (financiado pela major Universal), nomeado em vez, por exemplo, de Derradeira Viagem, de Richard Linklater (produção independente distribuída pela Amazon), para dar um exemplo, é inevitável perceber que os Óscares andam a olhar para o lado errado.
O problema é que, apesar de serem originários de uma das comunidades criativas mais progressivas e liberais dos EUA, os Óscares vivem numa bolha que não está habituada a interagir com a realidade, mas sim a criar a sua própria realidade. Foi preciso um hashtag do Twitter como #OscarsSoWhite para levantar a questão da ausência da representação das comunidades negras nos prémios; este ano, só depois da eleição de Trump, é que de repente há um filme que fala do racismo nomeado nas categorias principais: Foge, de Jordan Peele. Mas se não tivesse havido todo o discurso à volta da raça que encheu as colunas de opinião da imprensa americana, será que um filme como Foge, que é (horror!) um filme barato de género do tipo ao qual os Óscares geralmente torcem o nariz, teria chegado às nomeações?
E, já que estamos a falar de raça, porque é que, por exemplo, um filme de prestígio à medida dos Óscares como Mudbound – As Lamas do Mississípi se vê “fechado” das categorias principais quando, afinal, a sua realizadora, Dee Rees, até é uma mulher, e uma mulher negra, a falar do racismo americano vivido na pele por muita gente em tom de saga familiar? Será que é porque a Academia não o considerou suficientemente bom (e não é nada de especial; mas em vez dele nomeou A Hora mais Negra, que é uma história de grandes homens brancos e que não é melhor filme...) ou por vir com a chancela da Netflix, que é neste momento a grande ameaça à sobrevivência de Hollywood? E porque é que Greta Gerwig é nomeada para Melhor Realizadora por Lady Bird mas Dee Rees não, num ano de #MeToo em que, por exemplo, Linha Fantasma, de Paul Thomas Anderson, vê Daniel Day-Lewis e Lesley Manville nomeados mas não Vicky Krieps, que é tão importante para o filme como os outros dois? E porque é que Chama-me pelo Teu Nome é nomeado para tanta coisa mas não na categoria óbvia de realização, aquela que mais sentido faria, porque é a sensibilidade de Luca Guadagnino, cineasta operático, que se sente em cada fotograma?
É uma toca do coelho pela qual podíamos ficar a resmungar muito tempo, mas nem assim se chega perto da questão com que abri esta coluna: com todo este ruído, uma pessoa até se esquece de que há bom cinema na lista (dos que já vi, Linha Fantasma é de longe o meu preferido, mas Chama-me pelo Teu Nome, Dunkirk, Foge, The Post ou Três Cartazes à beira da Estrada são presenças perfeitamente honrosas). Mas a verdade é que já não olhamos para os filmes enquanto filmes, mas enquanto cavalos numa corrida que não dá garantias de posteridade. E isso, para uma cerimónia que devia ser sobre o cinema, sobre a arte, sobre o talento, é um problema muito sério.