O consenso franco-alemão para o euro?
A dicotomia que tem marcado o duelo França x Alemanha – respetivamente, a prioridade à partilha de risco vs. à redução do risco – é falaciosa, pois é através da partilha do risco, no contexto da moeda única, que ele se pode reduzir.
Na semana passada, foi publicado um paper (1) que será – certamente – um marco no debate europeu sobre as reformas por fazer na zona euro, e servirá – possivelmente – de guião às iniciativas que o novo presidente do Eurogrupo terá a responsabilidade de consensualizar nesse fórum, preparando a sua votação no Conselho Europeu. Digo possivelmente, pois, apesar do relativo minimalismo das propostas, não é certo que as condições políticas franco-alemãs o permitam (para não falar dos restantes 17).
O paper é assinado, et pour cause, por um conjunto representativo dos mais reputados economistas franceses e alemães. Procuraram alcançar uma síntese das discussões técnicas nos últimos anos que, sendo de solidez indubitável, seja tão (ou tão pouco) abrangente quanto é possível aproveitando os pontos em comum das posições dos dois países.
O próprio grupo de economistas procura ser abrangente para fortalecer o exercício: inclui desde “falcões” como Clemens Fuest, diretor do CESifo de Munique (onde pontificava antes Hans-Werner Sinn), até “pombas” como Agnés Bénassy-Queré, presidente do Conseil d’analyse économique nos anos do(s) Governo(s) Hollande, passando pelos influentes Henrik Enderlein, diretor do Instituto Jacques Delors de Berlim ou por Jean Pisani-Ferry, ideólogo fundador do Bruegel e “guru” económico de Macron (até à sua investidura como Presidente), e ainda macroeconomistas académicos de topo radicados nos EUA como Brunnermeier, Farhi ou Gourinchas.
Trata-se pois de 22 páginas que estarão em cima da mesa dos gabinetes mais importantes da política europeia, pelo menos no seu core franco-alemão – e, evidentemente, devem ser analisadas com cuidado pelos países que, sendo “pesos-pluma” no euro, podem e devem aspirar a ter uma intervenção importante e positiva neste debate, como pedia Ricardo Cabral no PÚBLICO de 18 de janeiro passado (co-autor de um importante contributo português para o debate, também).
Os autores começam por fazer um enquadramento crítico da atual situação do euro e do seu quadro institucional, de seguida elencando linhas de ação concretas para as áreas fundamentais: arquitetura do sistema bancário, e enquadramento orçamental. Destacam, de muitas, seis propostas: i) penalizações para os bancos que concentrem demasiada dívida pública de um só país; ii) regras simples de controlo do crescimento da despesa em vez do atual sistema ultra-complexo focado no défice estrutural; iii) a criação de um quadro legal para permitir a reestruturação ordeira das dívidas soberanas insustentáveis; iv) a criação de um fundo de estabilização macro-orçamental financiado com contribuições periódicas dos países; v) a criação de um “ativo seguro” sintético para a zona euro, que ofereça aos mercados financeiros e bancos europeus uma alternativa à aquisição de obrigações soberanas nacionais; vi) alterar a governação da zona euro de modo a separar o “juiz” do “procurador” na aplicação das regras orçamentais (papéis hoje desempenhados em simultâneo pela Comissão Europeia, considera-se).
Não caberá aqui um comentário completo, mas comecemos pelo início. O enquadramento inicial não assume explicitamente, mostrando antes implicitamente, ao que vem: partindo do universo de propostas sólidas e desejáveis, extrair o melhor subconjunto politicamente viável tendo em conta as restrições políticas nos dois países.
Explica que esse terreno comum é maior do que tem sido aparente, pois a dicotomia que tem marcado o duelo França x Alemanha – respetivamente, a prioridade à partilha de risco vs. à redução do risco – é falaciosa, pois é através da partilha do risco, no contexto da moeda única, que ele se pode reduzir. E que isso não tem de significar, pelo contrário, menos responsabilidade nacional. Aqui parece ter “ganho” a França.
Contudo, vemos que terá sido uma visão mais germânica a sair por cima quando percebemos que não só não se desfaz, mas nem sequer se reconhece a existência de outro comprimento de onda deste duelo: responsabilidade vs. solidariedade. E quando se coloca como condição sine qua non que qualquer medida a implementar não pode sequer correr o risco de criar “risco moral” – em especial através de transferências permanentes entre países.
Argumenta-se, aliás, que a questão, por exemplo, de um orçamento para a zona euro ou outros mecanismos de transferência orçamental centralizada não está relacionada, ou não é necessária, para a estabilidade económica e financeira do euro, embora possa ser importante para outros “bens públicos” de que a Europa pode eventualmente precisar. Não admite, assim as limitações que daí decorrem: muitos economistas (p. ex. Francesco Franco, nesta coluna, 18 de dezembro) defendem que, na verdade, ferramentas orçamentais relevantes ao nível da União são imprescindíveis para a estabilidade macroeconómica do euro.
Compreende-se esta abordagem, porém, tendo em conta o objetivo do desiderato: mais do que chegar ao conjunto de propostas mais eficazes e recomendáveis, o que se pretende é chegar ao compromisso possível e viável no imediato, que retire aos líderes margem de manobra para a inação. Em 2016 era o referendo do "Brexit". Em 2017, eleições em França e na Alemanha. 2018 será a “janela de oportunidade” de que fala Centeno e que Juncker vem tentando abrir, mas a formação de Governo na Alemanha e o “choque de realidade” que Macron tem sofrido são elementos que têm soprado para a fechar. No final do ano já se aproximarão as eleições europeias e será tarde. No fundo, as desculpas nunca são demais para não tomar riscos políticos.
Por isso, as simplificações podem ser perdoadas: não serão os melhores economistas do eixo franco-alemão os mais indicados para fazer esta negociação com o menor custo para a racionalidade económica?
Certo é que, marcando este autêntico paper-manifesto a agenda, caberá aos portugueses, como de outros países, ler, refletir e comentar, para contribuir para a negociação a partir de “fora”, para ajudar a que estejamos mais representados “dentro” quando chegar a hora de votar as reformas no Conselho Europeu.
(1) Reconciling risk sharing with market discipline: A constructive approach to euro area reform, CEPR Policy Insight 91