Um baile com a Argentina no corpo

Um mergulho no passado recente da Argentina, e na singularidade performativa de um conjunto de bailarinos.

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JOSÉ CALDEIRA/TEATRO MUNICIPAL DO PORTO
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Mathilde Monnier, a coreógrafa francesa que dirigiu durante mais de uma década o Centro Coreográfico de Montepellier Landguedoc-Roussilon, um pilar no ensino e na experimentação coreográfica europeia, e cuja criação se pauta pela investigação da dança e das suas fronteiras, regressou ao Porto no passado sábado com El Baile, um animado e intrigante baile criado em colaboração com o escritor argentino Alan Pauls, que coroou com energia, sensualidade e provocação a celebração do 86.º aniversário do Teatro Municipal Rivoli.

El Baile (2017) desenvolveu-se na senda de uma outra peça paradigmática no contexto francês, Le Bal (1981), criação do encenador Jean-Claude Penchenat para a companhia do Théâtre du Campagnol, que convocava, para os corpos e os gestos de baile de um teatro sem texto, três décadas da história da França após a Segunda Guerra Mundial. Retomando a premissa de ler a história dançada nos corpos, este novo El Baile tem como foco as últimas quatro décadas da Argentina, país onde as milongas e os bailes populares persistem, sobrevivendo a ditaduras militares e graves crises políticas e económicas.

Colocado perante um desenho cénico simples, composto por duas linhas de cadeiras vazias frente a frente que delimitam as laterais do palco e, ao fundo, por um barracão metálico, e com a luminosidade a estender-se até à plateia e a ampliar o proscénio, o público é convidado a assistir a este baile, uma montagem de várias danças, diversos corpos e tempos. A primeira parte, menos estimulante, é dada pela entrada circular dos bailarinos um a um que, cumprimentando o público, tomam o seu lugar sentado em palco. Abrem o baile com mostras individuais do seu virtuosismo dançado e cantado, desafiando-se mutuamente, personificando com humor alguns estereótipos do imaginário argentino, que vão da ambiguidade do tango (entre a beleza e a submissão), à sensualidade e ao erotismo da cumbia, à emergência da street dance, e à gestualidades de gangues e claques. Contudo, é no desenlace da segunda parte da peça que Monnier desconstrói a aparente banalidade e ligeireza do primeiro momento. Num crescendo coreográfico, e aproximando-se da frente de palco, os bailarinos confrontam o público com as suas catarses, os seus excessos e as suas fragilidades.

Ao som de músicas pop argentinas das décadas de 80 e 90 interrompidas por sons de helicópteros rasantes e ovações de multidões, Monnier explora a singularidade performativa dos bailarinos (munidos de figurinos, texto e canções) como matéria coreográfica, em colaboração com o escritor argentino Alan Pauls, autor de uma trilogia sobre a Argentina da década de 70. Através da História do Pranto (2008), da História do Cabelo (2011) e da História do Dinheiro (2014), Pauls disseca a sociedade do seu país através dos elementos que estamos destinados a perder, num período conturbado da história política e económica argentina, quando a inflação descontrolada tornou o dinheiro um bem obsessivo, obscuro e obsceno que reconfigurou a relação entre as pessoas.

A dramaturgia da peça não é surpreendente, e reitera o trajecto histórico na sequência de quadros coreográficos que associamos à violência e à opressão em tempos de ditadura, bem como à euforia do futebol. Após uma belíssima cena de tango em conjunto, que não reprime um inconsciente colectivo de dominação e controlo, El Baile termina com um bailarino que dança ao som de uma música pop, sozinho dentro do barracão em chapa metálica. Indiferente à goleada da bola de futebol infligida na estrutura, o bailarino continua a dançar, metáfora dos bailes e das milongas que continuarão a mover corpos indiferentes à passagem do tempo, e à impotência em relação ao seu próprio destino. É caso para relembrar a célebre frase de Pina Bausch: “Dancemos, dancemos, caso contrário estamos perdidos”. 

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