Fogaça, a rainha e musa da Feira

Em Santa Maria da Feira, manda a lei que a 20 de Janeiro se partilhe uma fogaça com a família e os amigos. Mas, ainda que se mantenham algumas tradições, como a que leva centenas de meninas a saírem às ruas da cidade com o pão doce à cabeça, outras há que se reinventam. Vai um tiramisu de fogaça?

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Nelson Garrido
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Nelson Garrido

São mais de 500 anos de história que Santa Maria da Feira celebra pelas ruas este sábado. Quando, na Idade Média, a peste bubónica dizimou vastos povoados por terras em torno do castelo, a fé já levava muitos à igreja com apelos a São Sebastião para que lhes protegesse a saúde em troca de uma fogaça e a promessa pareceu surtir efeito: o mártir devia gostar do pão doce local em massa tenra, deixou-se consolar pelas ofertas desse voto e lá libertou da Peste Negra as gentes do condado.

Bom espécimen que o povo era da natureza humana, contudo, não tardou a que quebrasse o cumprimento de palavras e actos. Magnanimidade divina? Não seria apanágio do santo que deixara de ser soldado, mas mantinha o rigor e a boa boca: Sebastião deixou que novas catástrofes voltassem à rua e fez tombar mais corpos. Por convicção religiosa ou crença empírica, as gentes da Feira aprenderam então a lição, retomaram a troca de fogaça por vida e, mesmo perante os avanços proporcionados pelo saber de novos séculos, cumprem agora a promessa há 513 anos consecutivos, sem falhas.

De pão fino e delgado, a fogaça evoluiu entretanto para um formato circular encimado por quatro saliências a lembrar as torres do castelo da Feira. O ritual de repartir o pão abençoado entre os pobres também progrediu para um consumo mais generalizado, que, desde a Implantação da República, se vem alargando a um número crescente de forasteiros e turistas, graças ao poder de atracção dos cortejos cívicos em que centenas de fogaças são confiadas a São Sebastião por meninas de aspecto virginal que as desfilam à cabeça trajando vestidos brancos cintados por cetim colorido.

Telma Luís nunca foi donzela nessas procissões, mas entre as suas recordações de infância guarda os momentos em que confeccionava com a tia Matilde fogaças caseiras para distribuir pela família. “Eu era pequenina e tinha muita dificuldade em esticar a massa, mas gostava de lhe recortar o topo com a tesoura, para ficar na forma do castelinho, e depois colava-me ao forno a vê-la crescer, até ficar dourada”, recorda. “Sentia que aquela época era especial e também queria fazer parte do ritual.”

Hoje já não se descobre quem coza fogaça em casa de tão prático que é encomendá-la nos nobres estabelecimentos da praça, mas, se é um facto que o pão doce que aquietou a peste pode agora já não ter tantas almas às quais renovar a fé, não é menos verdade que aconchegará certamente mais estômagos e corações. A fogaça celebra-se a 20 de Janeiro, sim, mas, profana, come-se todos os dias, sozinha ou acompanhada. Saboreia-se com manteiga, com queijo; reinventa-se com pepitas de chocolate, recheios cremosos e mirtilos; serve-se ao pequeno-almoço ou na hora do chá, como sobremesa ou prato principal. “É um produto que se presta a muitas reinterpretações e que é fácil recriar”, assegura Ricardo Topa, professor na Escola Secundária de Santa Maria da Feira, onde 24 estudantes do Curso de Cozinha e Pastelaria exploram regularmente o potencial da fogaça, cruzando-a com camarão, charcutaria e alheira, por exemplo, ou aplicando-a em pudins espessos e gelados suaves. “Os alunos aprendem o método de confecção tradicional, mas ficam mais entusiasmados quando têm que recriar o original. É natural: primeiro conhece-se o passado e depois inova-se para o reinventar.”

Os méritos da inspiração culinária desses jovens só poderão avaliar-se no futuro, mas seguem-se agora cinco receitas que demonstram como os restaurantes e confeitarias da Feira lhes levam já avanço na concorrência. Se até São Sebastião soube exigir o que lhe era devido, iam agora os chefs e empresários da terra desperdiçar os seus dotes e facilitar?

 

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Javali das Guimbras em fogaça

Paulo Correia orgulha-se de criar em cada ano uma nova interpretação da fogaça e em 2018 brinda os clientes do Baco.Come com uma fusão entre o pão doce criado para apaziguar São Sebastião e outros elementos do território. Para isso escolheu javali de produção nacional como o que por vezes ainda se vê na mata das Guimbras, cenário de várias lendas em torno do Castelo da Feira, e, depois de o marinar “mais de 24 horas em vinha de alho, tomilho e alecrim”, deixa-o guisar durante cinco a sete horas com produtos regionais da época: castanhas, abóbora e cogumelos do bosque, servidos com a carne dentro de uma fogaça confeccionada “com menos açúcar do que o habitual para se ajustar melhor aos sabores da caça”. O miolo retirado ao pão doce para o deixar acomodar a carne também se faz protagonista: é desfeito para se transformar em migas de penca, que, por estes dias, também se encontra farta e viçosa nos quintais da região.

 

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Carne de porco com fogaça

O chef Luís Sotto Mayor deu início à tradição de recriar a iguaria-mor da Feira há umas boas duas décadas e hoje continua a não prescindir do ritual: a sua receita de carne de porco com fogaça só está disponível a 20 de Janeiro e, mesmo que desapareça do buffet num ápice, não voltará a ser confeccionada até que novo ano se desenhe no calendário. Os privilegiados que conseguirem garantir o seu quinhão a tempo irão saborear uma carne que, “temperada com tempo e cuidado”, vai a assar ao forno e se serve depois “numa cama de fogaça com molho de cebolada”. Quando a iguaria acabar, acabou. Mas, em compensação, essa mágoa poderá afogar-se numa tigelada de fogaça ou num crocante de fogaça com lemon curd e creme de canela, porque o chef do Monhé defende que São Sebastião também merecia doces e esses demoram mais a esgotar por tantas serem as dietas que se opõem ao pecado da gula.

 

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Tiramisu de Fogaça

Joaquim Pinto deixa o aviso prévio à clientela nova: “Tiramisu só se faz por reserva e a pior ocasião para o vir experimentar é o dia 20 de Janeiro, porque no feriado não se pode com a confusão de fogaças a entrar e a sair.” Acalmados os ânimos, a especialidade italiana reinterpretada com o pão doce da Feira poderá então saborear-se em pleno, com mais apreço pela textura própria que lhe é proporcionada pelo mascarpone e pelo travo amargo-amendoado do Amaretto. O proprietário da Renascer reconhece o sucesso dessa receita, mas assegura que a bola de carne em massa de fogaça também tem muita saída e este ano orgulha-se particularmente de outra iguaria criada há uns meses: as muralhas de fogaça, em que miniaturas desse pão acastelado vão ao forno com um recheio de queijo, bacon e presunto. Daí a sua sugestão convicta: “O melhor mesmo é festejar com duas coisas, saboreando um salgado como entrada e o tiramisu como sobremesa.”

 

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Cheesefogaça

Inaugurado há poucos meses, o restaurante Os Vinte já inclui na sua carta diária a fogaça com fondue de quatro queijos, mas para a sua primeira Festa das Fogaceiras propõe uma receita nova: o cheesefogaça, que, embora recorrendo à textura tradicional de um semifrio de queijo mascarpone, opta por apresentá-lo dentro de um dos pequenos pães doces que oferecem protecção contra a Peste Negra. Carla Marques garante que por estes dias o restaurante do Feira Hostel & Suites também terá disponível o seu mil-folhas de fogaça com doce de chila e ovos-moles caseiros, mas aponta o semifrio envolto pelo pão doce da terra como “uma receita mais descontraída”, que contrabalançará com equilíbrio o peso simbólico das centenárias comemorações em honra de São Sebastião. “É uma boa sobremesa para recriar a tradição, com o seu remate final de morangos ou fisálias e uma mini-tablete de chocolate negro que somos nós mesmos a fazer aqui na nossa cozinha”, defende.

 

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Bomboca de fogaça com creme de Chamoa

Primeiro fazem-se os biscoitos de fogaça que irão substituir a bolacha wafer e depois prepara-se um creme leve de Chamoa, o licor de frutos silvestre que há cinco anos se tornou marca de Santa Maria da Feira. Entretanto, deixa-se arrefecer o invólucro de chocolate negro que irá envolver todos os ingredientes e, quando esse solidificar, preenche-se o seu interior com o creme, salpica-se o recheio com pepitas doces carbonadas e fecha-se tudo com o remate de biscoito. Está então pronta a servir a bomboca de fogaça com que o restaurante Praceta presta homenagem não apenas a São Sebastião, mas também à infância daqueles que nos anos 1980 gostavam de sentir na boca os estalidos de “petazetas”. Miguel Bernardes garante que “o paladar do chocolate vai contrastar com a acidez dos frutos da Chamoa”, mas diz que a experiência plena depende mesmo é do manusear: “A bomboca sabe melhor se for comida à mão, com direito a bigodinho de chocolate e tudo!”.

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