Liberdade individual nos bares do SNS

Faz sentido defendermos determinados padrões alimentares para depois, dentro do próprio SNS, praticarmos o seu contrário?

Muita tinta tem corrido sobre o recente despacho que limita a venda de doces e salgados nos bares, cafetarias e bufetes das instituições do Ministério da Saúde.

Falamos de produtos alimentares prejudiciais à saúde e o objetivo parece-nos claro: melhorar a oferta no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e promover uma alimentação saudável dentro destes espaços. Parece-nos igualmente claro que esta medida não pretende limitar a liberdade individual de cada um. Mas já lá iremos.

Recuemos a 2016 quando, em junho desse ano, é emitido um despacho que limita a disponibilização de produtos prejudiciais à saúde nas máquinas de venda automática existentes no SNS. Na altura, pouco foi o ruído que se fez sentir. Em vez disso, os concessionários aplaudiram a medida, adequaram a oferta alimentar e, veja-se, até mantiveram as vendas.

A iniciativa, muito positiva e que dava mais um passo na promoção de hábitos alimentares saudáveis, era, contudo, incompleta. Porque no SNS não existem apenas máquinas de venda automática. Há bares, cafetarias, bufetes. Por isso, e por uma questão de elementar congruência política e estratégica, era necessário uniformizar com as mesmas regras todos os locais que disponibilizam oferta alimentar no SNS. E foi exatamente isso que o Ministério da Saúde fez com o novo despacho, dando assim coerência à estratégia definida anteriormente. Simples, não é?

Depois, há um outro argumento que toda a gente compreenderá, já que, mais uma vez, tem a ver com uma questão de coerência. A questão é: faz sentido defendermos determinados padrões alimentares para depois, dentro do próprio SNS, praticarmos o seu contrário? O adágio popular “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço” até pode ser engraçado, mas é uma péssima prática.

Enquanto profissionais de saúde, não podemos demitir-nos da responsabilidade de promover bons hábitos alimentares. Como sabemos, é mais eficaz promover a saúde que combater a doença. E é por isso que o Ministério da Saúde deve ser felicitado. Ordem dos Nutricionistas, Ordem dos Médicos e Organização Mundial da Saúde (OMS) já o fizeram, esta última destacando, inclusivamente, que “Portugal é um dos países europeus líderes” em matéria de políticas de promoção de hábitos alimentares saudáveis.

Estamos no bom caminho e devemos orgulhar-nos disso. Mas não somos os únicos nem estamos isolados do resto do mundo. Medidas similares já são adotadas noutros países, como o Reino Unido, por exemplo, onde as bebidas açucaradas foram banidas dos hospitais do National Health Service, ou como na cidade de Londres, onde os restaurantes de fast-food foram proibidos num raio de 400 metros das escolas. 

São medidas apoiadas na evidência cientifica e que estão em linha com as recomendações da OMS, uma autoridade de saúde. Mas são também, e acima de tudo, medidas preventivas para a diminuição de doenças crónicas na população.

Talvez seja importante recordar que, em Portugal, temos sérios erros alimentares e que existe uma forte evidência que nos mostra que a alimentação é um dos principais fatores modificáveis que mais contribui para a mortalidade e morbilidade da população.

Somos dos países com maior prevalência de hipertensão arterial. 40% dos portugueses são hipertensos. Consumimos o dobro da quantidade de sal recomendada pela OMS. Ingerimos mais de dez gramas por dia, quando a OMS aponta para cinco gramas diárias.

Mais de metade da população tem excesso de peso, a obesidade entre os jovens de 15 anos cresceu quase 60% nos últimos anos, quase um terço das crianças ainda tem excesso de peso. Se nada fizermos, os nossos filhos viverão menos do que nós.

Ou seja: estamos a morrer de doenças que se relacionam com a alimentação. Por isso, é da responsabilidade de quem nos governa a adoção de medidas que tornem mais saudáveis os locais onde as pessoas escolhem e compram alimentos. Naturalmente que os locais com maior responsabilidade de serem bons exemplos nesta matéria são os que estão sobre alçada pública, como os hospitais, os centros de saúde ou os estabelecimentos de ensino.

Posto isto, o que a recente polémica veio colocar a descoberto foi a necessidade de estas medidas serem acompanhadas por programas de literacia alimentar e nutricional, de forma a informar e capacitar a população para escolhas alimentares mais saudáveis.

E voltemos ao início. O que está em causa não é a liberdade individual. É garantido: esta medida não pretende limitar o direito de escolha alimentar de cada um. Todos são livres de consumir os produtos que entendem. Com mais ou menos açúcar. Mais ou menos sal. Mais ou menos gordura. Não esperem é que se promova a comercialização de produtos prejudiciais à nossa saúde nos mesmos espaços onde se promove a saúde e se tratam as doenças que deles decorrem.

Urge agora o acompanhamento destas medidas com programas de aumento da literacia alimentar e nutricional, para informar e capacitar para escolhas alimentares mais saudáveis.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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