Rui Rio a preto e branco
Num ponto, todos estarão de acordo: Rio, se conservar a prática e o estilo que revelou na Câmara do Porto, será um político diferente. Não pelo programa, mas pela maneira de ser.
O principal erro que se pode cometer quando se antecipa o mandato de Rui Rio no PSD é encará-lo como um político convencional. Rui Rio não é um político convencional, ou, pelo menos, obedece a convenções políticas muito diferentes da maioria dos seus pares. Essa é a sua força. E também pode ser a sua fraqueza. Não lhe faltam as doses mínimas de calculismo, a vocação para urdir redes de influência partidária ou uma conveniente suspensão dos banhos de ética que prometia dar ao partido em nome da protecção de um cacique de Ovar que lhe arregimentou 17 votos em casas onde só vivem oito pessoas – e não eram do PSD. Mas, descontando o cheiro putrefacto que exala após todas as eleições partidárias, Rui Rio não deve ser visto nem reflectido como mais um líder do PSD no seio de uma longa continuidade democrática.
Quem seguiu de perto o seu percurso de 12 anos na Câmara do Porto sabe que se há algo que o motiva é a ideia de que é diferente e a teimosia em cumprir a ideia de que é diferente. Há nele uma mistura de convicção genuína na bondade das suas certezas e a crença numa predestinação para grandes feitos. No homem comum que diz gostar de ser coexiste uma ambição que, em conjunto, o tornam ao mesmo tempo temível e frágil, inspirador e banal, visionário e provinciano, solidário e autocrata, austero e demagogo, afável e feroz. E se Rio pode ser uma coisa e o seu contrário, o yin e o yang de si próprio, é porque tem a seu favor uma imagem de honestidade à prova de quaisquer contradições. Por estes dias em que os políticos enterram a sua presunção de inocência em discussões ridículas sobre prendas de 150 euros, este não é um trunfo de somenos. Rio é dos poucos líderes políticos que passam com facilidade no teste de credibilidade da revista britânica The Economist: a maioria comprava-lhe um carro em segunda mão.
Anda meio mundo a tentar adivinhar quem fará parte das suas equipas, como lidará com o grupo parlamentar, como unirá ou separará as águas no partido, se será mais passista ou menos passista, mas, mais do que escolhas políticas, o factor crítico para o desempenho de Rui Rio é a sua personalidade. O Rui Rio de 2000 nada tem a ver com o Rui Rio da actualidade. Hoje, o líder do PSD é uma pessoa muito mais polida pela experiência e muito mais segura de si por força dos seus sucessos. Já não lhe passaria de certeza pela cabeça “erradicar os arrumadores” do Porto. Talvez não lhe ocorra exigir pedidos de desculpas a jornalistas por terem expressado opiniões que lhe desagradaram. Dificilmente criaria um programa de hostilidade tão declarada aos agentes da cultura como o que desenvolveu no Porto. Muito provavelmente geriria de forma mais diplomática conflitos como o que com zelo e prazer manteve com o FC Porto. E provavelmente adoptaria uma posição negocial mais aberta em contratempos judiciais como os que alimentou nos terrenos do Parque da Cidade, que custaram dezenas de milhões de euros à Câmara.
Miguel Veiga era um personagem renascentista, literário, e por isso oposto à ideia que Rui Rio projecta de si. Mas esteve sempre ao seu lado. Miguel Veiga dizia que Rui Rio era melhor quando colocado sob pressão. Nesses momentos, é obstinado até à irracionalidade. Para muitos, essa atitude era sinal de uma confrangedora fraqueza e de uma óbvia incapacidade de gerir tensões e conflitos. Para outros, pelo menos para a maioria dos eleitores do Porto que lhe deram três vitórias consecutivas, essa intransigência era sintoma de clareza de ideias, de determinação de carácter e de firmeza de princípios. Não há meios-termos. Rio tem essa suprema vantagem de separar as águas, de evitar o cinzento, de fugir ao politicamente correcto. É nesta definição que se alicerça a sua imagem de político impoluto e insensível aos interesses. Num país descrente dos políticos, esse activo de Rui Rio pode fazer toda a diferença.
Rio conserva essa aura de homem impoluto, mas já não veste em permanência essa imagem tipicamente tripeira do rufião que adora dar o peito às balas. A sua moção de candidatura é sintoma de uma evolução no sentido da normalidade da política, onde a táctica não dispensa a manha e a ronha, o pensamento é condicionado pelo calculismo e a liberdade fica refém do medo de errar. A cada passo, porém, o pé fugia-lhe da chinela e Rui Rio não conseguia ser outrem que não ele próprio - quando falou do futuro da segurança social condicionada pelo quadro macroeconómico ou da estratégia para o dia a seguir às legislativas caso o PSD venha a ser derrotado. Para a direita ultraliberal, esse deslize é revelador de um líder mesquinho, preocupado em encontrar uma âncora que o salve de um mais que provável naufrágio nas próximas eleições; para a esquerda, é sinal de responsabilidade porque mostra um líder supostamente conformado com a derrota iminente e rendido à hegemonia do PS. Mais do que um programa, essas declarações são o manifesto de um homem desconfortável com o calculismo a que se votou.
Rui Rio dificilmente cortará programas sociais. Não é crível que esteja disposto a abdicar de funções públicas em áreas críticas como a Saúde ou a segurança social. Os grandes detentores do “capital social” que circula no que descreve como “a corte” terão dificuldades em manter a sua influência. São estas as costelas que reivindica da esquerda. Mas estará pouco disponível para manter a deificação que este Governo concede ao Estado ou à Função Pública – se fizer como no Porto imporá uma drástica reorganização dos serviços e auditorias dolorosas a tudo o que implique custos. Olhará sempre com desdém para a Cultura, para o cosmopolitismo ou para as exigências sociais em torno de matérias como a igualdade de género (embora seja liberal em questões como o aborto). E será tão ou mais ortodoxo do que Passos Coelho na gestão das finanças públicas. Questões que, afinal, o aproximam do conservadorismo e dos valores da Direita.
O PSD que ele define, um partido que vai do centro-direita ao centro-esquerda, pode ser um saco de gatos onde cabe tudo. Uma amálgama onde a personalidade de Rui Rio vai emergir. Os eleitores esperançosos numa mão forte para pôr o país na “ordem” terão no seu estilo uma inspiração. Os que preferem uma democracia mais consensualizada, onde o diálogo e a discussão livre e aberta fazem parte do jogo, hão-de olhá-lo como um resquício de um passado iliberal. Num ponto, todos estarão de acordo: Rio, se conservar a prática e o estilo que revelou na Câmara do Porto, será um político diferente. Não pelo programa, mas pela maneira de ser. Com ele, só há preto e branco. Nos dias que correm, não é coisa pouca. Ou talvez não.