O que faz um bom leitor?
As conclusões não publicadas do relatório nacional do PIRLS 2016.
A descida significativa de 13 pontos na média nacional do estudo Progress in International Reading Literacy (PIRLS) 2016, que avalia a literacia de leitura de alunos no 4.º ano de escolaridade, comparativamente à do PIRLS 2011 foi recebida com algum desencanto por todos os stakeholders da educação. Diferentes atores do sistema educativo nacional — de políticos especialistas, a especialistas não políticos — foram céleres a avançar as razões que explicariam, em teoria, a evolução negativa dos resultados de leitura dos nossos alunos do 4.º ano. Contudo, não é evidente, no conjunto de citações dos especialistas publicadas pela comunicação social, em que suporte empírico, do sistema educativo ou do PIRLS, se baseiam as explicações avançadas. Os dados disponibilizados pela IEA — a organização responsável pelo estudo — permitem, mais do que a análise persecutória de resultados menos bons, identificar as variáveis que fazem — à luz do PIRLS — um bom leitor.
O PIRLS providencia, para além dos resultados de literacia de leitura, informação sobre variáveis de contexto dos alunos, das famílias, dos professores e das escolas. Estas variáveis são organizadas em escalas e índices que refletem características dos alunos, famílias, professores e escolas capazes de explicar os desempenhos dos alunos. Contudo, neste tipo de análises é necessário relembrar que o PIRLS, como o TIMSS ou o PISA, é um estudo correlacional. Isto é, as variáveis de contexto são observadas simultaneamente com os resultados dos alunos. Não existe qualquer manipulação experimental destas variáveis nem qualquer tipo de controlo temporal. Assim, qualquer inferência de causalidade deve ser devidamente caucionada: se existir uma relação causal entre duas variáveis, então elas estarão correlacionadas; mas a existência de correlação ou de variação concorrente entre variáveis não é suficiente para demonstrar uma relação de causalidade. Interpretações dos resultados não escoradas nestas precauções poderão ser pouco mais do que mera fantasia estatística.
A literacia de leitura de cada aluno é apresentada sob a forma de valores plausíveis obtidos por um modelo estatístico ajustado à população dos alunos que responderam aos mesmos itens do teste e que apresentam características sociodemográficas idênticas. Os valores plausíveis são pois estimativas estatísticas e, como todos as estimativas, sofrem de erros de estimação que resultam quer da amostragem limitada dos itens/domínios do teste realizada por cada aluno, quer da representatividade dos alunos amostrados na população-alvo do estudo. Adicionalmente, os alunos estão aninhados em turmas/escolas que, por sua vez, estão aninhadas em regiões. A compreensão dos resultados do PIRLS exige análises estatísticas complexas que ponderem devidamente a incerteza das estimativas de desempenho e a natureza hierárquica dos dados. Isto é, o efeito das características dos alunos e das suas famílias no desempenho dos alunos não se manifestam de forma isolada das experiências e competências dos professores, nem do contexto organizacional e administrativo das escolas. Não devem, por esse motivo, ser analisadas isoladamente sob o risco de produzirem conclusões erróneas. A análise conjunta destas variáveis, organizadas em diferentes níveis hierárquicos, permitiu chegar a algumas conclusões que aqui se resumem.
No PIRLS 2016, 19% da variação dos resultados de literacia de leitura dos alunos portugueses é atribuível a diferenças entre escolas (características das escolas e do seu corpo docente), 26% é explicado por variáveis do aluno e da família e 32% é explicado por variáveis de contexto relativas aos professores e às escolas.
Ao nível dos alunos e famílias, a “confiança dos alunos como leitores” (uma medida psicométrica da confiança do aluno nas suas capacidades de leitura) e os “recursos educativos disponíveis em casa” (um indicador do estatuto socioeconómico e cultural das famílias) são as duas variáveis com maior poder preditor da variação da literacia de leitura no PIRLS 2016. Quanto mais confiante é o aluno nas suas competências, melhores são os seus resultados: o acréscimo de uma unidade de “confiança” traduz-se num acréscimo de 30 pontos na escala do PIRLS; de forma semelhante, por cada unidade dos “recursos educativos”, o desempenho dos alunos aumenta 20 pontos na escala do PIRLS. O “Sentimento de Pertença à Escola” e as “Competências Precoces de Literacia”, duas medidas que avaliam, respetivamente, o gosto do aluno pela escola e as competências de leitura que os alunos apresentavam à entrada do primeiro ciclo, têm também um efeito preditor significativo, ainda que reduzido (cerca de 10 pontos/unidade). É de realçar que outras variáveis, como por exemplo, a frequência do ensino pré-escolar ou o nível de escolaridade mais elevado dos pais, estão incluídas implícita ou explicitamente noutros preditores (p.e., a frequência do pré-escolar reflete-se nas “Competências Precoces de Literacia”; o nível de escolaridade mais elevado dos pais está incluído na escala “Recursos Educativos em Casa”), pelo que os seus efeitos não alcançam relevância prática ou estatística quando analisadas em conjunto com outros preditores.
Ao nível da escola e dos professores, a perceção, dos professores, quanto à vontade dos alunos terem sucesso académico (31 pontos/unidade da variável “Vontade de Ter Sucesso”) e a ênfase da escola, reportada pelos diretores, no sucesso académico (40 pontos/unidade da escala de “Ênfase”) são as duas variáveis com maior poder preditor para explicar a variação observada nos desempenhos de literacia. A escala de “Ênfase da Escola no Sucesso Académico” reflete as características organizacionais da escola referentes à persecução dos objetivos curriculares, capacidade dos professores para motivar os alunos para a aprendizagem, do envolvimento e expetativas dos pais com a escola e com a motivação dos alunos para o sucesso académico.
Outras variáveis de nível do professor como, por exemplo, as “estratégias de ensino assentes na síntese de ideias principais do texto», e a perceção dos professores das «limitações impostas à pratica letiva resultantes das dificuldades dos alunos” também têm um poder preditivo significativo, mas de menor magnitude (cerca de 10 pontos/unidade). A natureza administrativa das escolas (público/privada), que na análise isolada das variáveis de escola é aquela que melhor prediz a variação dos resultados da literacia de leitura, perde significância estatística quando esta variável é combinada com variáveis do aluno (p.e., os recursos educativos em casa ou as atividades precoces de literacia).
Em suma, os alunos com melhores desempenhos no PIRLS 2016 são confiantes nas suas capacidades (de leitura); provêm de agregados familiares com mais recursos educativos; sentem-se integrados na escola; e demonstram ter competências de leitura à entrada no 1.º ciclo de escolaridade. Estes alunos frequentam escolas onde é dada maior ênfase ao sucesso escolar; os professores sentem que os seus alunos têm vontade de terem sucesso escolar; a síntese das ideias principais do texto são as atividades de ensino mais eficazes; onde os "impedimentos ao ensino devido a limitações dos alunos são reduzidos; e onde os encarregados de educação têm expetativas elevadas sobre o desempenho dos seus educandos.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico