Uma aparição: Carolina Amaral
Luísa Cruz teve de abandonar o elenco de Actores depois de findo todo o trabalho de recolha de materiais. No seu lugar, e vivendo as suas memórias, uma actriz espantosa que começamos a descobrir.
“Isabelle, on va commencer. 5 minutes.” Mas quando começa a declamação majestática de Jeanne d’Arc au Bûcher, não é a voz de Isabelle – actriz francesa cujo apelido facilmente se adivinha – que se ouve. É a de Luísa Cruz, no Teatro Nacional de São Carlos. É a Luísa Cruz de 2003, com 41 anos, quando a oratória dramática de Arthur Honneger foi apresentada em Lisboa. É, na verdade, uma voz que se escutou em palco, mas nunca diante do público. Luísa era a actriz escolhida para assumir o papel de Joana d’Arc caso Isabelle sucumbisse a uma recaída da doença que a acometera pouco antes.
Em rigor, não é também a voz de Luísa Cruz que escutamos agora a encarnar, por fim e durante breves instantes, Joana d’Arc perante uma plateia cheia. É a de Carolina Amaral, chamada há apenas três semanas para tomar o lugar de Luísa em Actores, devido ao seu abandono motivado por cansaço extremo. Carolina tem 24 anos, longe dos 55 de Luísa, estava a gozar uns poucos dias de descanso em Berlim quando recebeu a chamada de Marco Martins que (em conjunto com Beatriz Batarda) a dirigira há um par de meses em Todo o Mundo É Um Palco. “Fiquei atordoada”, recorda ao Ípsilon. “Quando ele me disse que ia chegar e apropriar-me do trabalho da Luísa, uma das minhas actrizes preferidas, pensei que era uma oportunidade única, porque sabia que aprenderia com ela – não através da sua presença, mas da sua ausência.”
Numa peça em que os outros quatro intérpretes revisitam as suas próprias memórias profissionais, Carolina Amaral tenta descobrir um lugar para si no emaranhado de experiências de palco de Luísa Cruz, sabendo, ainda para mais, que a sua “aterragem de emergência” implica uma “absoluta urgência e ter de ser implacável, sem tempo para floreados”. Calha bem que a actriz acredite ser condição essencial para a profissão “ir atrás do desafio, seguir para o precipício e estar sempre a tomar riscos”, e goste de “sentir o perigo e o desequilíbrio”. Os riscos, ainda assim, são suavizados pela experiência prévia com Marco Martins, Nuno Lopes e Bruno Nogueira. O encenador descobriu-a em 2013, quando na apresentação de Rosencrantz e Guilderstern no Teatro Nacional São João realizou uma audição com estudantes da ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo, no Porto) para preencher os pequenos papéis da trupe que cirandava em torno da personagem de Bruno Nogueira.
Desde então Marco Martins e Beatriz Batarda não mais lhe perderam o rasto, procurando acompanhar os espectáculos em que participava e não desviando por muito tempo a atenção do seu início de percurso. E nem seria preciso esgravatar muito, porque Carolina Amaral começou aos 18 anos a fazer pequenas participações no cinema, em filmes de Margarida Gil, Edgar Pêra ou Rodrigo Areias, e nos últimos dois anos trabalhou com regularidade em criações teatrais de Marcos Barbosa (O Conto de Inverno e Um Pontinho Entre os Olhos) e Nuno Cardoso (O Misantropo e Veraneantes), tendo passado também pelo Teatro da Garagem – seguir-se-ão nos próximos meses projectos de João Pedro Vaz e Sara Carinhas.
Finda a ESMAE, estudou ainda durante um ano no Conservatório Superior de Arte Dramática, em Paris, onde se cruzou com nomes fundamentais das artes performativas europeias como Thomas Ostermeier, Tatiana Frolova ou Nada Stancar. Por lá, diziam que “Carolina est folle”, devido à natureza explosiva que havia de fazer com que deitasse abaixo uma placa do tecto da escola numa improvisação. Foi só depois do regresso que começou a infiltrar-se, aos poucos, no teatro português, mas com uma voracidade e uma disponibilidade imensa para estar em palco – sabendo desses vários recursos, os encenadores pedem-lhe com frequência que dance e cante, já o tendo feito com Manuel Fúria numa criação de Marcos Barbosa. Em Todo o Mundo É Um Palco, quase se ficava sem fôlego de a ver repetir a mesma coreografia incontáveis vezes e assistir a um imparável movimento que só se extinguia com o seu corpo numa morte solitária.
Cumprir um sonho alheio
Essa mesma vivacidade transbordante reaparece em Actores, mas agora com o controlo necessário ao lhe caber, como lhe chama em tom de piada Marco Martins, “o biopic da Luísa”. Uma piada que tem, como quase sempre, uma ponta de verdade: não se tratando de uma experiência típica para qualquer actor, aquilo que lhe é pedido é que trate o material biográfico e artístico que recebeu em mãos “como se fosse uma personagem que está no papel”. Essa é uma virtude óbvia de Carolina, que não se encolhe perante o peso de memórias que não lhe pertencem nem acusa (quer por excesso quer por defeito) a chegada tardia ao grupo.
Não podendo colocar as suas experiências em palco, muito do que ali vemos acontecer não lhe é estranho – nem os castings, nem os pesadelos, nem alguns dos papéis que povoam o espectáculo. Mas dificilmente poderia haver uma sintonia mais perfeita entre um dos momentos capitais de Actores e os interesses presentes da actriz. Quando Carolina toma o lugar de Luísa e se lança ao texto de Honneger, não está apenas a cumprir um sonho alheio – como se Luísa o cumprisse no seu corpo –, mas também a carregar consigo toda a investigação de meses que levava já desenvolvida em torno da heroína nacional francesa morte na fogueira, figura em torno da qual conta desenvolver um projecto em breve. Até agora, a sua única criação própria aconteceu em 2017, com uma série de aparições de “uma figura feminina em negro”, inspirada pelo centenário das aparições da Virgem Maria, que baptizou como Stella Matutina e apresentou no espaço público lisboeta entre Maio e Outubro.
Carolina Amaral, e não Luísa Cruz, está agora em palco enquanto Joana d’Arc e vai começar a falar. Vai começar a dizer, diante do público, “Un petit brin de vot’farine, un petit oeuf de vot’géline, une petite larme pour Jeanne! Une petite prière pour Jeanne!”