Lale Sokolov era o tatuador de Auschwitz e foi lá que se apaixonou
The Tattooist of Auschwitz conta a história de dois judeus que se apaixonaram no pior dos cenários e sobreviveram. Ficaram juntos até ao fim da vida. Livro sai esta quinta-feira.
O começo desta história de amor é, no mínimo, inusitado. Lale Sokolov dedicava-se à sua tarefa diária de tatuar números de identificação nos braços dos judeus que chegavam ao campo de concentração de Auschwitz e que não tinham por destino imediato as câmaras de gás quando reparou numa rapariga de 18 anos que esperava a sua vez na fila. Quando ela se sentou para que a marcasse com o número que lhe tinha sido atribuído, Lale soube que tinha à frente a mulher da sua vida: “Eu tatuei um número no seu braço. Ela tatuou o seu nome no meu coração”, diz este prisioneiro, também ele judeu, em The Tattooist of Auschwitz, livro em que conta a sua história e a história desse amor nascido no meio de uma das mais eficazes máquinas de matar dos nazis.
“Este homem, o tatuador do mais infame dos campos de concentração, manteve o seu segredo seguro por acreditar, erradamente, que tinha algo a esconder”, disse à BBC Heather Morris, autora do livro que será lançado esta quinta-feira no Reino Unido, referindo-se ao facto de Lale Sokolov ter mantido durante décadas o silêncio sobre o seu passado e o da sua mulher, Gisela "Gita" Fuhrmannova (nalgumas fontes o seu apelido surge como Furman). Só os amigos mais chegados tinham conhecimento da sua história improvável.
Lale temia que o vissem como um colaboracionista, explicou a autora deste livro baseado em três anos de entrevistas com este homem que só resolveu falar depois de ficar viúvo, em 2003. Tinha já 87 anos e vivia num subúrbio de Melbourne, na Austrália.
“Os horrores de sobreviver quase três anos num campo de concentração deixaram-no com medos e paranóias para uma vida inteira.” Sentia o seu passado em Auschwitz como um fardo pesado que o assombrou até ao fim da vida, acrescentou Morris. Morreu em 2006.
O assistente
Lale Sokolov, que nasceu Ludwig Eisenberg, em 1916, na Eslováquia, entrou em Auschwitz em Abril de 1942, aos 26 anos, fazendo parte de um dos primeiros contingentes de judeus que para ali foram transportados. Começou por construir blocos para o alojamento dos prisioneiros, mas acabou por se transformar no tatuador oficial daquele campo do sul da Polónia, que se encontrava em expansão acelerada. Como? Pouco depois de chegar contraiu tifo e o homem que tratou dele, um outro prisioneiro que cumpria essas funções, um académico francês chamado Pepan, fez dele seu assistente. Tinha sido Pepan a tatuar no braço de Lale o seu número – 32407 – e a ensinar-lhe o ofício. Quando Pepan desapareceu, sem que o aprendiz alguma vez tenha descoberto o que lhe aconteceu, Lale assumiu o seu lugar.
O domínio que tinha de várias línguas (eslovaco, alemão, russo, francês, húngaro e até um pouco de polaco) ajudou a fazer dele o tatuador do campo, sempre vigiado por um oficial das SS, a força militar mais temível ao serviço dos nazis, encarregue da protecção do próprio Hitler.
Auschwitz, que foi sinónimo de morte para pelo menos 1,1 milhões de pessoas, era um complexo de quatro campos dirigido pelo temível Rudolf Höss, que chefiava um contingente de 6500 a 7000 militares das SS que assegurava o funcionamento, confiando algumas das tarefas mais desprezíveis aos que para li tinham sido deportados.
Como qualquer outro Sonderkommando – assim se designavam os prisioneiros que eram forçados a colaborar com as forças alemãs –, Lale usufruía de uma série de regalias. No seu caso passavam por um quarto individual num edifício da administração do campo, rações alimentares extra e até algum tempo livre quando não havia ninguém para marcar com os números que se tornaram um dos maiores símbolos das atrocidades cometidas pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial. Gita, que chegou em Julho, era o 34902.
Oficialmente, quando recebiam o número, perdiam o nome – nunca mais deveriam usá-lo no campo, nunca mais seriam chamados por ele.
Quando marcou a sua futura mulher no braço esquerdo, Lale era ainda o assistente de Pepan. Os olhos brilhantes de Gita impressionaram-no e não tardou a usar os seus privilégios para a ajudar. Através do oficial que o acompanhava, Baretski, fazia-lhe chegar cartas e conseguiu até que lhe fosse atribuído um trabalho menos pesado. Por vezes, o casal encontrava-se junto ao pavilhão de Birkenau, subcampo de Auschwitz, onde Gita dormia, conta o tablóide britânico Daily Mail.
“Ele nunca se viu como um colaborador”, disse Morris à BBC. Simplesmente fizera o que tinha de fazer para garantir que acordava na manhã seguinte e que Gita tinha mais hipóteses de sobreviver do que a esmagadora maioria dos deportados para os campos da morte.
“Qualquer dia levo-te”
Lale, conta Heather Morris no livro, não se limitou a ajudar Gita. Capaz de se movimentar pelo campo e de entrar em contacto com pessoas que viviam e trabalhavam ali perto, trocava jóias e dinheiro retirados aos judeus executados por comida que depois fazia chegar a outros prisioneiros. Também por isso, lê-se no texto que apresenta o livro, a história dos Sokolov mostra “o melhor do ser humano nas piores circunstâncias”.
Mal entravam no campo, os deportados eram separados em dois grupos – o dos destinados a trabalhos forçados e o dos que seriam executados de imediato. Aos primeiros era-lhes rapada a cabeça e tatuado um número no antebraço. Retiravam-lhes quaisquer objectos que trouxessem e as suas roupas eram trocadas por uniformes.
Josef Mengele, o médico que sujeitou milhares de prisioneiros a terríveis experiências em nome da ciência e do apuramento da raça ariana, era muitas vezes visto junto aos que acabavam de chegar, escolhendo as suas próximas vítimas enquanto assobiava as suas árias de ópera preferidas.
Contou Lale, segundo o obituário que lhe dedicou o diário britânico The Guardian, que, enquanto seleccionava os prisioneiros, não era raro o dr. Mengele aproximar-se dele para o provocar, dizendo: “Qualquer dia, tatuador, levo-te. Qualquer dia.”
Pesquisa internacional
Quando, no começo de 1945, prevendo a derrota próxima, os nazis começaram a transferir prisioneiros de Auschwitz-Birkenau (o campo foi libertado pelo Exército Vermelho a 27 de Janeiro) para outros campos, Gita e Lale foram separados. Ele foi enviado para o de Mauthausen mas acabou por conseguir fugir – escreve o Guardian que teve de nadar no Danúbio sob fogo cruzado dos alemães e dos russos – para a cidade onde nascera e daí, terminada a guerra, partiu para Bratislava à procura da mulher por quem se apaixonara. Sabia o seu apelido – Fuhrmannova –, mas não fazia ideia de onde vinha.
Quis o destino que fosse ela a encontrá-lo quando, já na capital eslovaca, Lale se preparava para ir procurá-la às instalações da Cruz Vermelha. Gita atravessou a rua mesmo à sua frente. Casaram nesse ano, em Outubro, e optaram por trocar o apelido original dele, Eisenberg, por Sokolov.
Começaram, então, a negociar em têxteis, enquanto se dedicavam a reunir fundos para a criação do Estado de Israel, actividade que fez com que Lale fosse preso e a empresa do casal nacionalizada pelo regime comunista. Perseguidos pelo Governo, resolveram fugir do país – dirigiram-se primeiro para Viena, mas foi de Paris que partiram para a Austrália, onde viveram até ao fim dos seus dias.
Fixaram-se em Melbourne, voltaram a negociar em têxteis, com sucesso, e Gita passou a desenhar vestidos. Em 1961 nasceu o seu único filho, Garry, que só depois da morte da mãe conheceu em pormenor a história dos pais. Foi ele, aliás, quem escolheu Heather Morris para dar voz às memórias do pai, a autora do livro que tanto tempo demorou a ganhar a confiança de Lale.
Não se julgue, no entanto, que The Tattooist of Auschwitz é apenas o resultado das infindáveis horas de conversa de ambos, explica Morris, que visitou este sobrevivente de Auschwitz várias vezes por semana durante três anos. Muito do que ele contava foi corroborado por documentos encontrados em vários arquivos internacionais.
Heather Morris está convencida de que Lale Sokolov jamais teria falado da sua experiência durante a Segunda Guerra se a mulher fosse viva. Tudo o que sempre quis, em Auschwitz e longe dele, foi proteger Gita.