Sobre o financiamento dos partidos políticos
No limite, até poderia, porventura, aventar-se a hipótese de inconstitucionalidade formal.
1. Não é tanto ou não é apenas em nome da separação de poderes que, nas democracias modernas, o Parlamento surge, senão como o órgão legislativo exclusivo, pelo menos como o órgão com primado de competência legiferante. Assim sucede entre nós (arts. 136º, 154º, 165º e 169º da Constituição).
Isso por quatro razões: 1ª) pela ideia pluralista de que uma assembleia representativa de orientações políticas diversas se revela mais apta para tomar as grandes deliberações do que um órgão que funciona à porta fechada; 2ª) pela ideia, com ela conexa, do confronto e de debate suscetível de conduzir ao compromisso; 3ª) pela ideia de que, assim, se propicia a participação dos cidadãos em geral e dos diretamente interessados em especial, em moldes de legitimidade pelo procedimento (na conhecida fórmula de Niklas Luhmann); 4ª) pela publicidade de que se revestem todos os atos, desde a propositura de projetos ou propostas à votação final.
A publicidade decorrente das três primeiras razões e que se liga, ela própria, ao direito de todos os cidadãos de ser esclarecidos objetivamente sobre os atos do Estado e de ser informados acerca da gestão dos assuntos públicos (direito fundamental consignado no art. 48º, nº 2 da Constituição). A publicidade que implica difusão pelos meios de comunicação social dos projetos, propostas, fundamentações, sentido dos votos. A publicidade própria da democracia aberta de uma sociedade aberta.
Ora, estes pressupostos (que deveriam ter-se por evidentes) não foram observados pela Assembleia da República ao aprovar há dias um diploma de alteração de várias leis, designadamente da lei de financiamento dos partidos políticos (pela Assembleia ou pelos cinco, entre sete, partidos nela com assentos). A demonstração tem sido feita, com nitidez, por quantos se têm debruçado sobre o assunto. No limite, até poderia, porventura, aventar-se a hipótese de inconstitucionalidade formal.
2. Os partidos desempenham um papel insubstituível na dinâmica democrática. Um papel insubstituível e fundamental (arts. 10º, nº 2, 114º, nº 2, 157º). Não um papel exclusivo ou excludente, porque, a par deles, existem associações políticas (art. 51º, nº 1), iniciativas e grupos de cidadãos (arts. 115º, nº 2, 124º, 239, nº 4). E entre os princípios que regem as campanhas eleitorais avulta o de igualdade de todas as candidaturas [art. 113º, nº 3, alínea b)].
Há mesmo um artigo específico sobre os partidos (art. 51º), no qual se obriga a lei a estabelecer os requisitos e os limites do seu financiamento público e as exigências de publicidade do seu património e das suas contas (nº 8). A chamada liberdade de conformação do legislador tem de se mover dentro destes parâmetros com a adequada inserção sistemática no ordenamento e sem impedir o saudável arejamento ou renovação do sistema de partidos. Ora, não é isso que, em alguns pontos fulcrais, se verifica no recente diploma.
3. Poderia duvidar-se, à partida, da atribuição aos partidos de benefícios fiscais, por estes benefícios poderem contender com o princípio da igualdade perante a lei (art. 13º da Constituição) e por ser muito mais transparente e favorável aos contribuintes o financiamento direto mediante subvenções públicas. Todavia, eles acham-se há muito consignados e conhecem-se outras instituições, além dos partidos, que, semelhantemente, deles gozam.
4. O problema que tem sido discutido diz respeito ao IVA. No regime atual [art. 10º, nº 1, alínea c) da Lei nº 19/2009, de 20 de junho], a isenção refere-se à aquisição e à transmissão de bens e serviços que visem difundir a mensagem política e a identidade própria dos partidos, através de quaisquer suportes, impressos, audiovisuais ou multimédia, incluindo os usados como material de propaganda e meios de comunicação e transporte.
Agora pretende-se abranger, em termos genéricos, a aquisição de bens e serviços para a atividade dos partidos. É uma norma de excessiva latitude e que pode ser entendida como afetando a atrás referida norma constitucional sobre limites ao financiamento público.
5. Muito mais grave vem a ser, enquanto norma transitória do conjunto de diplomas, dispor-se a sua aplicação tanto aos processos novos como aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor que se encontrem a aguardar julgamento, sem prejuízo da validade dos atos praticados na vigência da lei anterior (art. 7º). Eis uma norma de carácter retrospetivo e que colide com o regular funcionamento das instituições, por atingir processos pendentes de decisão do Tribunal Constitucional.
6. A propósito, merece ser qualificada como muito positiva a divisão de competências que, entretanto, se consagra quanto à aplicação de coimas por infração à lei. Esta passa a ser, e bem, da competência da Entidade das Contas e dos Financiamentos Políticos, órgão independente de Administração Pública (art. 266º, nº 3 da Constituição) e das decisões desta cabe recurso para o Tribunal Constitucional, órgão jurisdicional [novos arts. 9º, alínea e), 103º, nº 1 e 103º-B da respetiva lei orgânica]. Simplesmente, essas regras devem valer para o futuro, para outros processos.
7. Por último, não pode deixar de se entender inconstitucional a segunda parte do aditado art. 8º-A à lei de financiamento. Nenhuma objeção suscita, antes pelo contrário, não se considerar receita partidária ou de campanha a cedência gratuita de espaços geridos ou de propriedade do Estado, de outras pessoas coletivas públicas, incluindo autarquias locais, e de entidades do sector público empresarial. E dessa cedência não pode resultar a discriminação entre partidos políticos ou candidaturas (nº 2).
Ao invés, a extensão da regra às entidades de economia social, tais como as definidas no art. 4º da Lei nº 30/2013, de 8 de maio, infringe os arts. 82º e 85º da Constituição, por não atender à distinção entre sector público e sector cooperativo e social, e viola a autonomia dessas entidades, impondo-lhes sobrecargas desviantes dos seus fins. Essas entidades são as adegas cooperativas, as associações mutualistas, as misericórdias, as fundações, as instituições privadas de solidariedade social, as instituições de fins altruístas de âmbito cultural recreativo, de desporto e de desenvolvimento social e as entidades abrangidas pelo subsistema social e comunitário.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico