Parlamento: a “caixa preta”
O modo como se faz uma lei no Parlamento é matéria bastante desconhecida.
O que se passou com as alterações à lei do financiamento dos partidos provocou uma justificada indignação em muita gente, dada a opacidade da decisão e o melindre da matéria. Mas é importante lembrar que essa é afinal a forma corrente de fazer leis no nosso Parlamento.
O que a maioria das pessoas conhece da AR é o plenário, os debates políticos. Sabe-se que há comissões e grupos de trabalho. Mas o que fazem, poucos sabem. Tornaram-se muito populares algumas comissões de inquérito, sobretudo no caso do BPN e do BES, porque deram azo a uma narrativa quase policial. Mas o modo como se faz uma lei no Parlamento é matéria bastante desconhecida.
O processo legislativo é lento. Começa com uma iniciativa que pode ser do Governo, de algum partido e até de cidadãos. Sendo admitida, é apreciada na generalidade em plenário. Se for chumbada, morre logo ali. Se passar, entra nas comissões e a partir daí é uma verdadeira “caixa negra”. Se ninguém puxar pela conclusão da apreciação na especialidade, a iniciativa cai. Mas se for levada até ao fim, acaba por se chegar a um texto que resulta da votação em comissão das propostas de alteração dos vários partidos. Não é hábito nem obrigatório que essas propostas sejam publicadas no portal do Parlamento, por isso poucos as conhecem. E a votação, alínea a alínea, artigo a artigo, de todas as propostas pode ser bastante morosa e difícil de acompanhar.
Só passados estes crivos todos é que o diploma sobe outra vez a plenário, para a chamada “votação final global”. Votação que ocorre ao final das manhãs de sexta-feira, no meio de uma longa série de votações, sem debate e sem que a maior parte das pessoas se aperceba sequer do que está a ser votado. Mesmo para os deputados, seguir todas essas votações é um exercício muito exigente, pela quantidade de matérias em jogo e pela extrema codificação com que tudo se processa. Deste rol de votações semanais pouco se fala e, no entanto, é dele que depende a efectiva aprovação de qualquer lei.
Para tentar mudar este modus faciendi, no grupo de trabalho da habitação, que coordeno, propus uma metodologia aceite por todos: primeiro chamar em audição as organizações ou entidades que têm a ver com o assunto em discussão (na alteração do arrendamento urbano, por exemplo, ouvimos perto de 20 entidades), produzir um relatório com o essencial dessas audições, e só depois apresentar propostas de alteração. A comunicação social é convidada a acompanhar este trabalho e tem acesso a todos os documentos. Tive até de fazer um sítio electrónico pessoal para isso, já que só no final do processo, após as votações, é que se consegue que tudo figure no portal do Parlamento. Mas nessa altura já é tarde. É na fase em que o texto está a ser redigido a várias mãos, em sede de comissão ou grupo de trabalho, que é fundamental saber o que está a passar-se — mas essa é a verdadeira “caixa preta” do nosso processo legislativo.
Ouço muitas vezes dizer, sobretudo a juristas: “O legislador fez isto mal.” Se for um diploma do Governo, naturalmente o legislador foi um ministro, um secretário de Estado ou alguém que estudou para eles e fez uma coisa com princípio, meio e fim. Mas se for um projecto de iniciativa da AR, não há “o” legislador. Há 230 senhores, divididos por vários partidos, a tentar construir ou desconstruir um determinado documento. Acresce que os diplomas são redigidos numa linguagem técnica, cheia de remissões, inviabilizando a sua compreensão por quem não for jurista.
Sem informação acessível, transparente e descodificada, o processo legislativo torna-se hermético, a comunicação social não consegue noticiar, o escrutínio cidadão deixa de se exercer e a democracia fica mais pobre. É possível fazer doutra maneira, o que implica dar muito maior visibilidade e acessibilidade ao núcleo duro da feitura das leis. Dá trabalho, exige bastante rigor e paciência, não permite resultados rápidos. Mas para quem acredita na cidadania é esse o caminho que vale a pena — o único que realmente nos pode garantir a formação transparente e democrática de uma decisão colectiva. É precisamente isso que deve ser uma lei.