Não sei fazer um balanço do ano
Este foi um ano em que o feminismo ganhou visibilidade e não foi só por causa do assédio e abuso sexual. É importante sublinhar, vincar e denunciar as desigualdades entre géneros, como as mulheres continuam a não ser reconhecidas, a ser desvalorizadas, mal pagas e maltratadas.
Sobre o que vou escrever na última crónica do ano? Saio da redacção com esta dúvida. E nada como caminhar para pensar. Bem, na verdade não me apetece assim tanto andar em cima de botas de salto, lado a lado com os corredores e ciclistas que se exercitam junto ao rio. Por isso, mudo de rumo e dirijo-me à paragem de autocarro mais próxima. Vazia. O quadro electrónico informa que tenho 18 minutos de espera. Nova alteração no plano: fazer a tal caminhada, desta vez, Avenida Infante Santo acima, até à Estrela. Tempo suficiente para o autocarro chegar perto da basílica.
Retomo o pensamento inicial: sobre o que vou escrever? Faço um balanço do ano? Escrevo sobre o assédio, como o caso Weinstein veio fazer-nos reflectir sobre comportamentos? Já o fiz antes. Mas com tantas mulheres, e também homens, a gritar “assédio”, não corremos o risco de viver num mundo vigiado, onde uma piscadela de olho nos pode levar a ser parangona num jornal? Ou a desvalorizarmos completamente um assunto que é sério?
Escrevo sobre “feminismo” ser a palavra do ano para o Merriam-Webster? Sim, este foi um ano em que o feminismo ganhou visibilidade e não foi só por causa do assédio e abuso sexual. É importante sublinhar, vincar e denunciar as desigualdades entre géneros, como as mulheres continuam a não ser reconhecidas, a ser desvalorizadas, mal pagas e maltratadas.
E por falar em maus tratos, escrevo sobre as decisões judiciais que revelam uma classe, a dos juízes, atávica, parada no tempo e má decisora? Este foi um ano em que confirmamos não só que a justiça tarda, mas também que falta, ao julgar presa aos seus preconceitos pequeno burgueses, como não consegue ver para lá dos códigos civis e afins, como o mundo é a preto e branco, com certezas de que “o ser humano não muda assim”.
Uma justiça que deveria fazer reflectir a universidade sobre o que ensina e como ensina. Aliás, uma escola inteira deveria pensar sobre o seu papel – a importância da educação para a cidadania. Se educássemos no respeito pelo outro não haveria assédio; não haveria patrões que não empregam mulheres porque elas engravidam ou pagam-lhes menos porque são casadas e é suposto eles levarem mais dinheiro para casa do que elas; não haveria seres, homens ou mulheres, maltratantes.
Chego à paragem planeada, sem uma ideia para escrever. Espreito o quadro e faltam cinco minutos para o autocarro chegar. Pouco depois, duas mulheres sentam-se ao meu lado. São brasileiras, andam pelos 40 e muitos, talvez 50 anos, e trabalham na mesma casa. A primeira cuida das crianças e a segunda é empregada doméstica, falam da patroa, ela para aqui, ela para ali.
– Os meninos estavam os dois chorando e ela só me dizia: ‘Cale-os, faça-os calar!’ – conta a ama, abrindo muito as vogais quando imita a patroa portuguesa.
– Não podia ajudar você porque estava terminando meu serviço para sair a horas – desculpa-se a outra.
– Não era preciso, mas ela podia interromper o que estava fazendo. Os meninos são filhos dela… – Mas ela também estava a trabalhar.
– Eu sei que ela me contratou para cuidar dos meninos, mas quando ela chega, eles se transformam, começam chorando e só pedem colo. E eles já são muito pesados.
– Choram porque querem a mãe. A minha filha também fazia isso quando era pequena. Quando eu, antes de fazer o jantar, brincava um bocadinho com ela.
– É isso aí! E ela não entende? Uma pessoa rica e letrada? Chega e vai passear o cão? Pode até fazer isso, mas por que não leva os meninos com ela?
O autocarro chega e os nossos caminhos separam-se. Ponho-me no lugar daqueles meninos, fico a pensar em mim, mais velha do que eles e com o nariz colado ao vidro da janela, à espera que a minha mãe chegasse. Pela avenida passavam as ambulâncias em direcção ao Hospital de São José. Será que a minha mãe teve um acidente, perguntava-me, quando estava atrasada, desejando ter visão raio-x que atravessasse a chapa dos carros dos bombeiros. E os meus dias eram cheios, como cheios são os dias da maioria dos meninos. Actividades não faltavam, só não tínhamos inglês, surf e padel, de resto tínhamos tudo. Tudo menos uns pais presentes porque trabalhavam a horas e a desoras em nome do nosso futuro. E nós só queríamos que eles chegassem a casa, olhassem para nós e nos vissem, só queríamos que nos amassem, em vez de andarem a correr impacientes.
Vou escrever sobre a família, penso. Melhor, vou escrever sobre mudar de vida. Não, vou escrever sobre ter tempo para o amor.
Esta crónica encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO