Uns fogem, os outros mentem
Não gozem connosco, senhores deputados. Há um limite para a falta de vergonha. Foram à caixa. Comeram os chocolates. Evitem ao menos esfregar as mãos sujas na nossa cara.
Os deputados portugueses aprovaram a nova lei do financiamento partidário como se fossem crianças a ir às escondidas à caixa dos chocolates, e ao serem apanhados pela comunicação social reagiram como crianças que foram às escondidas à caixa dos chocolates. Uns desculparam-se dizendo que nem sequer apreciam particularmente os chocolates que acabaram de comer (Bloco de Esquerda e PCP), os outros dizendo que aquilo que comeram parece chocolate, sabe a chocolate e cheira a chocolate, mas não é chocolate (PS e PSD). Uns fogem, os outros mentem. Os deputados portugueses não só têm manifesta dificuldade em reagir como pessoas adultas, como padecem de uma compulsão sadomasoquista que os leva a prejudicar simultaneamente o país e a eles próprios.
Não sei bem qual o comportamento mais deplorável, se o dos hipócritas, se o dos mentirosos, mas comecemos pelos hipócritas. O primeiro partido a dizer “comi mas não gostei” foi o Bloco, garantindo que apenas votou a favor da lei “pela necessidade de convergência”, embora ela “não espelhe a posição de fundo do Bloco de Esquerda sobre esta matéria”. O Bloco até alerta no seu comunicado para um problema grave, que não tem sido devidamente discutido: o facto de a devolução do IVA aos partidos agravar a “discriminação entre candidaturas partidárias e candidaturas de grupos de cidadãos eleitores a autarquias locais”. Está muito bem visto. A lei é fraca, superficial e discriminatória, logo, o Bloco votou a favor. O PCP fez o mesmo. Jerónimo de Sousa declarou que as “melhorias” agora introduzidas são “insuficientes”, e classificou a lei do financiamento partidário como – agarrem-se para não caírem – “absurda, antidemocrática e inconstitucional”. No entanto, dado a lei ter ficado, segundo os comunistas, ligeiramente menos absurda, menos antidemocrática e um pouco menos inconstitucional, o PCP achou por bem atribuir-lhe um voto favorável. Também faz sentido.
E depois dos hipócritas, os mentirosos: em vez de “comi mas não gostei”, estes optaram pelo argumento “comi mas não era chocolate”. Comunicado do grupo de trabalho clandestino, coordenado por José Silvano, do PSD: da nova lei aprovada “não resulta nenhum aumento de subvenção estatal ou quaisquer encargos públicos adicionais para com os partidos políticos”. Ana Catarina Mendes, do PS: “é totalmente falsa a ideia de que há um aumento nos cofres partidários com esta lei”, tal como é falso “qualquer propósito de beneficiar retroactivamente qualquer partido político”. Não tenho espaço para estar aqui a desmontar estas afirmações patéticas, e os jornais têm feito bem o seu trabalho de analisar, através do fact-checking, o absurdo dos argumentos. Deixo apenas uma citação da própria lei, para quem afirma não haver qualquer retroactividade: “A presente lei aplica-se aos processos novos e aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor que se encontrem a aguardar julgamento.”
Aquilo que me interessa sublinhar, em conclusão, porque nenhum português merece ser tratado como imbecil, é isto: se a lei é tão fantástica, tão cristalina, tão impoluta, e com o único e exclusivo objectivo de dar resposta a um pedido do Tribunal Constitucional, qual é a justificação para o secretismo de todos os procedimentos e o anonimato das propostas partidárias? Não gozem connosco, senhores deputados. Há um limite para a falta de vergonha. Foram à caixa. Comeram os chocolates. Evitem ao menos esfregar as mãos sujas na nossa cara.