Mathieu Amalric filma a Barbara impossível de conhecer
Um dos maiores actores contemporâneos que se prefere ver como “um realizador que também representa”, veio a Lisboa mostrar Barbara, biografia impossível de uma lenda da música francesa, inspirada por Alain Resnais e Ken Russell e com uma Jeanne Balibar em estado de graça.
Mathieu Amalric não queria fazer um filme sobre Barbara. “Era um projecto impossível, um biopic, um filme de época sobre uma divindade francesa de tal modo presente...” Mas aí o temos, Barbara, deslumbrante jogo de espelhos entre realidade e ficção, filme dentro do filme dentro do filme, biografia de Barbara que não é uma biografia de Barbara que “conta muitas coisas sobre ela sem verdadeiramente as contar.” Em Portugal para apresentar Barbara no Lisbon & Sintra Film Festival, algumas semanas antes da estreia em sala (esta semana), Mathieu Amalric (n. 1965), um dos maiores actores contemporâneos, fala da sua sexta longa-metragem enquanto realizador como “um carrossel, um caleidoscópio”, como “a casa dos espelhos da Dama de Xangai de Orson Welles, ou como os filmes que Ken Russell fez para a televisão britânica, sobre Debussy por exemplo.”
Não é uma biografia tradicional da figura maior dos anos de ouro da chanson francesa do pós-II Guerra Mundial (1930-1997), intérprete de temas de Georges Brassens, Jacques Brel ou Georges Moustaki mas sobretudo do seu próprio material, inspirado pela sua própria vida. A estrutura do filme é a rodagem de um biopic sobre Barbara, interpretado por uma vedeta internacional e dirigido por um cineasta obcecado pela cantora. Estamos a ver uma cena de Barbara a falar ao telefone enquanto prepara um recital, de repente ouve-se a claquette e a câmara mostra que tudo não passava de um take do filme que Yves está a rodar, e Brigitte, a actriz, “sai” da personagem… e de repente o dia de rodagem acaba, as luzes acendem-se. O público e o privado mesclam-se e confundem-se porque, afinal, também tudo isto não passa de um filme, como se os múltiplos écrãs que o filme levanta nos aproximassem mais da essência da cantora.
Amalric, como sempre conversador apaixonado, insiste que não foi fácil chegar a esta forma. “Sabe que hoje tenho a impressão que esta maneira de questionar a narrativa já se tornou extremamente banal,” diz, enquanto termina uma bica e um pastel de nata no foyer do cinema Nimas, em Lisboa. “Mas eu não queria ser original, não era esse o meu objectivo. O que eu queria era saber como me poderia apaixonar pelo género do filme biográfico e deixar entrar uma corrente de ar na sua forma. O meu filme é uma variação ao redor de um género que me inquietava, que me assustava.”
Começa-se a desvendar um pouco a razão pela qual o homem que conhecemos de filmes de Steven Spielberg (Munique), 007 (Quantum of Solace), Wes Anderson (Grand Budapest Hotel), Roman Polanski (Vénus de Vison) ou Arnaud Desplechin (mais recentemente Os Fantasmas de Ismaël) cita Ken Russell ou Orson Welles. O projecto de Barbara foi-lhe passado pelo cineasta e crítico Pierre Léon, que durante oito anos o tentou montar sem conseguir. “Eles não conseguiram. Esgotaram as suas forças a tentar e às tantas o Pierre diz-me, 'tenta tu'. Eu não queria fazer um biopic, cheguei a pôr a hipótese de não o fazer, e não sabia como podíamos fazer um biopic,” insiste Amalric. “Não conseguia. Desistia, recomeçava… e de repente apetece-me ver outras coisas, ser 'contra' o biopic. Lola Montès de Max Ophüls? É um biopic! O Mundo a Seus Pés também, This Is Spinal Tap de certo modo também, Last Days de Gus van Sant… De repente, percebi que é um género muito mais livre do que pensamos. Mas não quis fazer um filme teórico porque ela, Barbara, não teria gostado. Teria de ser um filme sensual, teria de ser à volta da música, queria alcançar essa sensação e essa musicalidade. Pensei que cada cena poderia ser uma canção, que poderíamos criar cenários para cada música que permitissem à história ser contada.”
Do período de desenvolvimento do projecto por Léon manteve-se a intérprete de Barbara: Jeanne Balibar, actriz de teatro e cinema que vimos em filmes de Rivette (Sabe-se Lá!, Não Toquem no Machado), cantora imortalizada no Ne Change rien de Pedro Costa – mas também ex-mulher de Amalric e mãe dos seus dois filhos, e actriz nos seus primeiros dois filmes. Um reencontro feliz – e Amalric diz que “nunca teria feito este filme se não fosse a Jeanne”. “Evidentemente. Já não trabalhávamos juntos há muito tempo e era divertido estarmos agora de novo juntos, e por isso podíamos inventar personagens que não têm nada a ver com quem somos na vida real!” Ri-se. “A Brigitte do filme tem uma carreira anglo-saxónica, relações públicas, veste-se como Rihanna… e a Jeanne não é nada disso, fez teatro experimental na Alemanha! Tratava-se de lhe criar um espaço onde ela pudesse divertir-se enquanto actriz ao mesmo tempo que tínhamos a felicidade de descobrir a verdadeira Barbara.”
Voltamos à questão dos vários níveis da narração, da passagem da ficção à realidade à biografia, de uma elegância quase indetectável, sem esforço. “Foi precisamente por isso que quis fazer planos muito longos. Para que existisse uma vibração, para que de repente pudéssemos ver o momento onde a actriz deixa de ser a personagem. Num biopic muitas vezes procuramos apenas a parecença, aqui de repente há coisas da actriz que vêm ao de cima.” Há, evidentemente, uma dimensão afectiva – apontamos as semelhanças da estrutura fluida, quase onírica, de Barbara com O Estádio de Wimbledon (2001), o maravilhoso segundo filme de Amalric como realizador e a sua última colaboração com Balibar como actriz. “Sim, tem razão – foi o último filme que fizemos juntos, e a equipa é praticamente a mesma, o mesmo director de fotografia, o mesmo montador… É bem verdade, e é muito bonito que assim seja. De repente há algo de especial porque houve tempo que passou, como nos filmes de Richard Linklater, Antes do Amanhecer e os seguintes… Mas sabe que isso são tudo coisas em que não pensamos! Por exemplo: nos Fantasmas de Ismaël do Arnaud [Desplechin], que rodei cinco semanas antes de rodar Barbara, também interpreto um realizador obcecado pelo seu filme, mas é um puro acaso! Quando ele me passou o argumento ele não sabia que eu ia começar o Barbara!”
Se nos seus primeiros filmes como realizador Amalric se mantinha por trás da câmara, com este já faz três onde se dirige a si próprio, depois de Tournée – Em Digressão (2010) e O Quarto Azul (2014). “Se apareço como actor nos meus filmes, é verdadeiramente porque é prático!” explica com um sorriso. “No Quarto Azul contracenava com a Stéphanie Cléau [a sua actual companheira], aqui era com a Jeanne, e como estava sempre a escrever ou a alterar cenas era mais prático ser eu a interpretar, porque estava sempre no plateau. No Tournée foi uma questão diferente, porque devia ser o Paulo Branco a interpretar o papel principal e acabei por ser eu, e nessa altura eu não queria fazê-lo. Mas nessa altura eu entendia a minha vida de actor como uma coisa que roubava tempo à minha verdadeira vida de realizador. Agora já não. Não separo as coisas, é o mesmo gesto.”
Amalric-actor continua a ser mais conhecido do que Amalric-realizador, mas o que ele nos diz no Nimas é muito simples: “Não sou um actor que entendeu começar a fazer filmes, sou um realizador que também representa. Se quiser, faço de actor de vez em quando, mas a minha vida é realizar – já fiz de tudo no cinema atrás da câmara, desde os 17 anos que estou em plateaux e comecei precisamente com o Paulo... Um actor, claro, vê-se em grande no écrã, mas os actores não são actores, são personagens nos filmes dos outros. Ter um papel principal são 21 dias da minha vida, não é nada comparado ao tempo que levamos a montar um filme, são anos! E enquanto actor, parecendo que não, exponho-me muito menos. Estou no mundo de alguém que faz o seu filme e sou levado pela sua pulsão. Exponho-me muito mais quando faço O Quarto Azul ou Tournée ou Barbara.”
Essa ideia de exposição e resguardo joga com uma ideia subjacente a toda a sua abordagem à vida e obra da cantora. “Há uma frase que, com o meu argumentista Philippe di Folco, era recorrente enquanto trabalhávamos no guião: 'nunca conhecemos a vida das pessoas'. É perfeito, porque estávamos a fazer uma biografia na qual decidimos que não conhecíamos a vida de uma pessoa. Nem eu nem a Jeanne conhecemos a Barbara em vida enquanto pessoa, e isso era perfeito! Porque apesar da Jeanne ter trabalhado imenso sobre as canções e de eu ter trabalhado imenso sobre a história, de termos absorvido muito sobre a vida dela, na verdade era como se estivéssemos a contar a história de uma personagem de ficção.”
Não é difícil acreditar que Balibar é Barbara – não tanto pela questão mimética da interpretação, mais pela apropriação do espírito, da presença da cantora, pela ideia de liberdade pessoal e criativa que a actriz projecta, de força da natureza que nada consegue abafar. Isso vai de encontro aos resultados da pesquisa de Amalric e Di Folco, do que leram da própria Barbara. “Compreendi que era uma mulher de uma enorme liberdade, e que não a podíamos fechar em gavetas,” explica Amalric. “Era importante que mostrássemos um lado dela que as pessoas não conhecem, a sua fantasia, o seu humor, as máscaras que usou toda a sua vida… Ela adorava os ilusionistas, adorava dizer que tinha começado no circo. Estávamos sempre a perguntar-nos, durante a rodagem, se o espírito de Barbara nos apareceria, até porque eu estava sempre à procura de uma perturbação, de explorar os modos de encarnação, ou de reencarnação, que o cinema propõe. Pensei muito em Alain Resnais, na ideia da crença na narrativa, até onde o cinema nos pode levar.” A julgar por Barbara, pode levar-nos muito longe.