Em Faro abriu um SPA em formato de livro, dirigido a pessoas especiais

Almoçar neste restaurante, servido com toda a etiqueta, custa apenas quatro euros. Os empregados, apesar do profissionalismo, não encontram facilmente oportunidade de trabalho porque são diferentes. E a inclusão é ainda um sonho distante.

Fotogaleria
Fotogaleria

O uso das siglas pode ser enganador. Na Associação Algarvia de Pais e Amigos de Crianças Diminuídas Mentais (AAPACDM), o SPA não é um convite ao lazer. Trata-se de uma cartilha, baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, para “Sentir, Pensar e Agir (SPA)” sobre os problemas de pessoas que rejeitam as injustiças. A publicação, com 43 páginas, traduz em palavras e imagens a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, a partir das experiências vividas numa instituição onde as ajudas não chegam para suprir carências básicas — faltam 1500 euros para equipar uma nova sala de estimulação sensorial, por exemplo.

Na sala de estimulação sensorial (Snoezelen), em Faro, ouvem-se sons da terra e do mar e há bolas coloridas a saltitar dentro de uma coluna. À primeira vista, parece uma sala de brinquedos. “É muito mais do que isso”, diz a terapeuta ocupacional, Ana Almeida, virando-se para o Rui (Ruca, como é carinhosamente tratado), sentado numa ponta do colchão de água. “Vamos lá fazer o jogo dos animais”, sugere. O Ruca fica, de ouvido apurado, a aguardar o canto do grilo. Aparece o “cri-cri” e a resposta é um enorme sorriso de satisfação. No lado oposto, António mantem o olhar suspenso no infinito. Ambos têm idades compreendidas entre os 30 e os 40 anos com deficiências profundas e todos estes estímulos visam despertar-lhes os sentidos, criar sensações, trazê-los para uma vida fora de si mesmos.

A sessão decorre no Centro de Actividades Ocupacionais (CAO) da AAPACDM, numa sala com cerca de dez metros quadrados — pequena para as necessidades. Em Santa Bárbara de Nexe, onde existe um outro CAO destinado a utentes menos profundos, existe uma sala de estimulação sensorial à espera de melhores oportunidade para ser reapetrechada com o equipamento deslocado de Faro. Os apoios, diz a vice-presidente da instituição, Cândida Pereira, não chegam para tanta necessidade.

Servir bem e barato

Num outro compartimento do edifício da instituição, situado na rua do Compromisso, em Faro, serve-se o almoço num restaurante pedagógico, com ensinamentos para enfrentar os caprichos de clientes exigentes. Quando a refeição vai a meio, o presidente da AAPACDM, Jorge Leitão diz: “Estamos a ser cobaias”, referindo-se ao facto de se tratar de um serviço prestado pelos jovens da instituição em contexto de formação profissional. Algo que não aflige o presidente da câmara, Rogério Bacalhau, antes pelo contrário. E promete voltar a este restaurante, aberto ao público, à segunda e sexta-feira, com marcação prévia. A refeição completa custa apenas quatro euros.

A psicóloga Patrícia Gonçalves aproveita a ocasião para explicar porque nasceu o SPA, um livrinho que mostra, com imagens simples, o que é a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência. O objectivo, diz, é que este guião sirva como instrumento de trabalho mas também deve ser debatido nas escolas: “Está aqui o que sentimos no nosso dia-a-dia”, justifica a psicóloga, lembrando que os utentes sentem-se “um bocadinho à margem das oportunidades”. A porta-voz do grupo, Susana Pacheco, desabafa: “É muito difícil [a integração]”.

O livro, apresentado na semana passada, pretende “que todos, com ou sem deficiência, fiquem juntos e lutem pela defesa dos seus direitos”, lê-se. A psicóloga Patrícia Gonçalves sintetiza: “Esta é a nossa versão da Declaração dos Direitos Humanos”, traduzida em 33 artigos, ilustrados com imagens. Porque não faltam exemplos de uma sociedade pouco ou nada inclusive, algo que começa pelo facto de “uma cadeira de rodas não conseguir circular por algumas ruas da cidade”, lembra a porta-voz do grupo.

Cândida Pereira, psicóloga, lembra que há cerca de um mês foi realizado um jantar de solidariedade para arranjar dinheiro para equipar a sala de estimulação sensorial, no Centro de Actividades Ocupacionais (CAO) de Stª Bárbara de Nexe. O resultado da receita ficou aquém das necessidades. “Faltam 1500 euros para equipar a sala Snoezelen. Pode ser pouco, mas para nós é muito dinheiro”.

Do conjunto dos planos para o futuro, destaca-se a ideia de construir uma nova sede, com lar, num terreno cedido pela câmara de Faro. O projecto está feito, mas o financiamento, cerca de dois milhões de euros, não está garantido. “Não conseguimos ter acesso aos fundos comunitários do Portugal 2020”, diz Cândida Pereira, adiantando que existe ainda a ideia de abrir um hostel na zona histórica da cidade. A nova unidade hoteleira, enfatiza, permitiria encontrar uma saída profissional para estas “pessoas especiais” que são formadas para integrar o mercado de trabalho na hotelaria e turismo, mas que vêm as portas quase sempre fechadas. “Ainda há muitas resistências”, enfatizou. Por isso, este livro, produzido pelos próprios utentes com a ajuda dos professores, encerra com uma mensagem universal: “Quando perdemos o direito de sermos diferentes, perdemos o privilégio de ser livres”.

Sugerir correcção
Comentar