O triunfo da morte

As fantasias apocalípticas estão no espirito deste tempo, e o coração narrativo de Ele Vem à Noite parece-se muito com o de inúmeros outros exemplos recentes.

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As fantasias apocalípticas estão no espirito deste tempo, e o coração narrativo de Ele Vem à Noite parece-se muito com o de inúmeros outros exemplos recentes, tomados entre filmes e séries de televisão: uma catástrofe (no caso, um vírus) dizimou a civilização americana, restam uns quantos sobreviventes isolados num confim rural, condenados a cooperar enquanto subsistem num permanente estado de sítio. O momento mais surpreendente do filme de Trey Edward Shults vem ainda nos minutos iniciais, é quando a câmara (aliás bastante hábil a explorar a tensão dos espaços vazios, dos corredores e das portas na casa central à acção) se detém sobre um célebre quadro de Brueghel —  o Triunfo da Morte — e fica ali a percorrê-lo em planos aproximados, isolando fragmentos como se por instantes o filme se convertesse num documentário de divulgação da pintura clássica.

Tem, esse momento, possivelmente duas intenções. Uma é conseguida em pleno: mergulhar no apocalipse medieval lembra o espectador de que a fantasia do fim do mundo é tão velha como o mundo, e que nesse sentido Ele Vem à Noite é para ser entendido como variação razoavelmente abstracta (até demasiado abstracta) sobre o tema. A outra intenção, o resto do filme mostra não estar à altura dela: ensopar Ele Vem à Noite com a memória do infernal imaginário de Brueghel, oferecer ao espectador uma imagem mental da “peste” que contamine o seu olhar sobre as imagens do filme, de resto bastante austero e bastante comedido no seu próprio imaginário (o que não é necessariamente uma pecha, bem pelo contrário).

Mais do que do quadro mostrado, daquilo que nos lembramos ao longo de “Ele Vem à Noite” é dum encontro entre A Noite dos Mortos Vivos de Romero (algo, aliás, implicado ainda pelas questões raciais que subjazem ao entendimento entre as personagens), e o The Thing de Carpenter (o mesmo cerco, mas sobretudo a mesma dificuldade em nomear e identificar a forma do mal, sempre um “it” sem designação). Mas em versão derivativa, quase um exercício de estilo, suficientemente curioso para sustentar o interesse até ao fim, mas em última análise igualmente frustrante.

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