Afinal, para onde foi toda a água de Marte?
O basalto marciano contém 25% mais água do que o basalto terrestre. Por isso, os cientistas sugerem agora que parte da água “desaparecida” está aprisionada nas rochas marcianas.
Marte não é nem habitado por parentes do ET, o alienígena que pôs o mundo a sonhar, nem apenas um planeta árido e assolado por tempestades de poeiras. Tem vulcões, incluído o maior do sistema solar, o Monte Olimpo; um desfiladeiro gigantesco, leitos de rios secos e até água congelada nos pólos e em regiões perto do equador, quase à superfície. Mas o mistério da existência ou não de seres vivos, mesmo que microscópicos, agora ou num passado distante, continua por resolver. Para desvendar esse enigma, tem-se seguido atentamente o “rasto da água”, sobretudo doce e em estado líquido, pois a vida como a conhecemos surgiu num ambiente aquoso. Agora, descobriu-se que os basaltos marcianos contêm 25% mais água do que os basaltos terrestres. E, por isso, os cientistas sugerem que parte da água “desaparecida” está, na verdade, oculta no subsolo, por baixo do chão pedregoso e irregular que vemos nos bilhetes-postais de Marte.
As observações feitas no planeta vermelho por sondas e outros instrumentos científicos têm sugerido que o seu ciclo hidrológico já foi semelhante ao da Terra. Sabe-se, aliás, que existe água congelada nos pólos e que as estranhas estrias escuras, que surgem todos os anos em certas encostas íngremes, são vestígios da água salgada, essa em estado líquido, que aí escorre ciclicamente durante pouco tempo (pois a água em Marte passa muito depressa para o estado gasoso). Depois, também têm sido feitas descobertas importantes graças ao robô Curiosity da NASA, que chegou a Marte em 2012 e que, entretanto, detectou por exemplo 2% de água em amostras do solo marciano, bem como a existência de seixos, mais ou menos arredondados, que alimentam as suspeitas de que a água em estado líquido chegou mesmo a ser abundante no planeta. Apesar disso, permanecem exactamente as mesmas dúvidas: será que a água em gelo à superfície é o que resta dos gigantescos oceanos que se pensa terem banhado Marte? E, se a água já foi assim tão abundante, será que a vida chegou a surgir? E, afinal, para onde foi essa água toda?
Sabemos que uma quantidade substancial de água se escapou da superfície do planeta para a atmosfera, em parte graças à gravidade relativamente baixa. E, embora ainda seja uma hipótese, uma outra parte da água “desaparecida” de Marte poderá estar escondida no subsolo – pelo menos é o que defende um artigo científico publicado na última edição da revista Nature.
A equipa internacional responsável pelo estudo examinou as propriedades das crostas máficas (ricas em ferro e magnésio) e aquíferas (que permitem o armazenamento ou a passagem de água) da superfície marciana e da terrestre. E concluiu que o basalto (a rocha mais presente nas crostas dos dois planetas) contém 25% mais de água em Marte do que na Terra, conseguindo por isso transportá-la até grandes profundidades (mais de 90 quilómetros abaixo da superfície). “As rochas em Marte interagiram com as águas superficiais, que estão agora aprisionadas na estrutura mineral [das rochas]”, explica ao PÚBLICO o principal autor do artigo, Jon Wade, da Universidade de Oxford (Reino Unido).
“Nunca é demais sublinhar que não se trata de água líquida, que se possa ‘espremer’ facilmente das rochas, mas sim água que se encontra nas redes cristalinas que compõem os minerais”, sublinha o geólogo português David Vaz, que é especialista em Marte e não participou no estudo. “Este trabalho propõe e explica de que forma parte da água poderá ter sido removida da superfície do planeta e armazenada no seu interior. Mas existem ainda outros mecanismos alternativos que podem justificar tanto a perda de atmosfera como de parte da água. A ‘erosão’ acelerada da atmosfera causada pelo vento solar, num cenário em que o planeta perdeu o seu campo magnético, é uma das opções.”
Em resumo, o que a equipa descobriu é que, por um lado, a água desaparecida está presa na estrutura mineral das rochas marcianas. E, de acordo com Jon Wade, a única forma de libertar essa água seria derreter a rocha. “Em Marte, mesmo quando as rochas começam a derreter, nem toda a água sai e parte permanece na rocha densa que não derreteu, o oposto do que se pensa ter acontecido no início da Terra.” E, por outro lado, que esse processo de absorção de água aumentou a oxidação das rochas marcianas, tornando o planeta inabitável.
“O sistema actual de tectónica de placas da Terra impede mudanças drásticas nos níveis de água superficial, com rochas húmidas a desidratarem de forma eficiente antes de entrarem no manto relativamente seco da Terra. Mas no início nem a Terra nem Marte tinham esse sistema de reciclagem de água”, explica Jon Wade, num comunicado da sua instituição. “Em Marte, a água reagiu com lava recente, que forma a sua crosta basáltica, e resultou num efeito semelhante ao de uma esponja. Depois, a água do planeta reagiu com as rochas, formando uma variedade de minerais que contêm água. Esta reacção entre água e rocha mudou a mineralogia das rochas, levando a superfície planetária a secar e a tornar-se inóspita à vida.”
Olhando para a geologia de mais planetas
Mas, afinal, quais são as diferenças entre a superfície terrestre e a marciana? Há relevos em Marte – como vales fluviais, leitos com meandros, zonas de escorrência e vestígios de verdadeiras enxurradas – que só parecem possíveis se supusermos que a água já correu na superfície. Agora, o planeta vermelho é estéril, muito seco e frio: tem uma atmosfera composta basicamente por dióxido de carbono, a temperatura média é 63 graus Celsius negativos e a pouca água existente está, como já referido, em forma de gás na atmosfera ou gelo misturado com o solo. “Mas a maior diferença entre as rochas superficiais da Terra e Marte é que as marcianas possuem mais ferro do que as da Terra e é o que as torna mais propensas a formar minerais densos e aquosos”, explica Jon Wade.
“O estudo mostra que talvez não seja apenas uma questão de um planeta estar à distância certa de uma estrela, ser do tamanho certo e ter a química correcta quando avaliamos se ele é adequado para que a vida evolua a longo prazo”, acrescenta o investigador. “Também é importante explorar detalhes, como a forma como o planeta foi feito a partir dos seus ‘blocos de construção’ planetários e a química dos seus silicatos, a parte rochosa. Estes detalhes podem ter um papel significativo na capacidade de um planeta reter água à superfície por longos períodos de tempo que permitam a evolução de vida complexa.”
Ainda há, contudo, muitas perguntas por responder. “Por exemplo, se temos provas directas de que os processos [descritos no artigo] ocorreram realmente ou se há informação geológica, recolhida pelos satélites em Marte, que os provem ou não?”, sugere Jon Wade. E talvez o novo robô-cientista da NASA, com lançamento previsto para Marte em 2020, possa ajudar. Espera-se que o Mars 2020 perfure rochas com o seu braço-broca e apanhe amostras, para as depositar num outro local, de onde talvez numa outra missão sejam recuperadas e trazidas para a Terra.
O próximo passo da equipa de Jon Wade será estudar a geologia de outros planetas, para perceber melhor qual o verdadeiro papel da química das rochas. Entretanto, sabemos que o próximo passo (mas já não o primeiro) da humanidade, ou pelo menos dos norte-americanos, deverá ser o regresso à Lua – um marco, disse este mês o Presidente Donald Trump, “para estabelecer os alicerces de uma missão a Marte, que vai acabar por acontecer.”
Texto editado por Teresa Firmino