Apoio do Estado às artes
O regime é o contrário do que deveria ser, inutilmente complicado e obscuro.
Acabou recentemente o prazo para a apresentação de candidaturas a apoios do Estado às artes, com dois ou quatro anos de duração, concedidos através do Ministério da Cultura. Perturbado com o que sobre o assunto me ia apercebendo, fui ver do que se tratava. O apoio público à criação artística é das competências mais relevantes da atividade do ministério. Não se repercute apenas na vida dos artistas. Trata-se também da nossa vida, nós que precisamos do que eles fazem.
Do estudo que me foi possível fazer cheguei a conclusões que transmiti ao ministério, algumas das quais, admito presunçosamente, poderão interessar a leitores deste jornal.
1. A lei que regula o apoio financeiro do Estado às artes estabelece fins e objetivos desse apoio formulados através de expressões para mim enigmáticas: “valorizar a fruição artística enquanto instrumento de correção de assimetrias territoriais e de desenvolvimento humano, social, económico e financeiro”, “coesão social e territorial”, “qualificação dos cidadãos”, “valorização do território”, “transversalidade setorial” e quejandas.
Para além de para mim ininteligíveis, revelam que o Estado entende que as artes que apoia devem prosseguir objetivos que são exteriores a elas, suas eventuais decorrências. Pretende orientar os sentidos da criação que por sua própria natureza deve ser deixada livre de outros propósitos que não sejam ela própria.
Estes fins e objetivos têm relevância prática porque se prevê sejam tomados em conta num dos critérios de avaliação das candidaturas.
2. O sistema que o Governo construiu inicia-se com um “plano estratégico” a ser aprovado pelo ministro da Cultura e conclui-se com o acompanhamento e avaliação das atividades desenvolvidas pelos artistas. Em minha opinião, o “plano estratégico”, tal como está previsto, é inútil, é impossível de ser feito (não há informação que o permita) e não vai existir nos termos em que a lei o prevê. A demonstração disto exigiria mais espaço do que o disponível. Mas a minha discordância essencial é sobre a existência de um plano, mesmo que fosse possível fazê-lo bem. É sobre a pretensão do Estado em intervir na criação estipulando-lhe utilidades e objetivos ainda por cima a anos de vista.
3. O Estado deve apoiar as artes e os artistas. Deve fazê-lo de forma simples e eficaz e respeitando as pessoas, tratando-as bem. Os concursos devem ser abertos com periocidade certa, independentemente do governo em exercício, e com antecedência devida em relação à concretização dos projetos. Há muito tempo que não é assim. Os apoios para um ano devem estar decididos o mais tardar até junho do ano anterior. Infelizmente, na lei atual não é estipulado um prazo para abertura dos concursos. Como muitas vezes sucede nas relações entre Estado e cidadãos, as obrigações do primeiro não têm prazos de cumprimento, as dos segundos têm-nos imperativos. Os diplomas que regem a concessão dos apoios são complexos, muitas vezes mal escritos, com abundância de terminologia veneranda a uma moda pseudo-científica, com múltiplos significados possíveis. Exige-se aos concorrentes, artistas que trabalham em estruturas frágeis, num diabólico formulário, informação transbordante, grande parte inútil, que lhes demanda um esforço excessivo e desnecessário. Ouvi e li de candidaturas que se estendem por entre cerca de 200 e cerca de 400 páginas de textos, orçamentos e anexos. Coisas que os membros das comissões que as apreciam não vão ter tempo, nem interesse, acho, em analisar em pormenor e que deram um trabalhão a conceber, recolher, escrever, preencher. Em suma, o regime é o contrário do que deveria ser, inutilmente complicado e obscuro.
4. Ao exigir-se, aos candidatos a apoios a dois e quatro anos, que expliquem em pormenor tudo o que vão fazer de 2018 a 2021, com previsões que só por acaso coincidirão com a realidade e estimulam a fantasia, o Estado convida à mentira. Sabe-se lá, por exemplo, se tal artista ou técnico estará disponível daqui a dois, três ou quatro anos para fazer certo espetáculo se não é possível segurá-lo com um contrato. Ou quantos espectadores terá o dito. Ou qual a receita de bilheteira. Ou que plano de comunicação será o mais adequado. Como isso, e muito mais, o júri deverá ter em conta nas suas decisões, a tendência normal e justificada é para os concorrentes preverem que tudo vai correr bem, que o futuro será risonho. O que hoje se pensa que será bom fazer em 2020 pode estar ultrapassado no princípio de 2019 por imensas razões, notoriamente porque assim decorre da forma como se cria. Enfim, há inúmeros motivos para pensar que os júris vão decidir sobre informações fantasiosas a coberto de um pseudo-rigor. Não conheço o conteúdo de nenhuma candidatura. Deduzo que seja assim pelo que li numa apresentação do formulário pela DGArtes que é pública e que está, que pena, incompleta.
5. Para que se apoiem, tanto quanto possível, os melhores projetos (sendo que aqui se entra inevitavelmente no domínio da subjetividade), o que é preciso é que os critérios de avaliação sejam poucos, simples, claros, e as pessoas que apreciem as candidaturas saibam da poda e tenham bom senso, sabedoria e sensibilidade. Injustiças e erros de avaliação haverá sempre. Para mim, os critérios fixados nas normas aplicáveis são complexos, de difícil decifração, têm em conta conceitos ou facetas da atividade do tipo que referi em 1, que exigem utilidades de conteúdo enigmático. O modo de escolha dos avaliadores, baseado no oferecimento pelos próprios para executarem tal tarefa desde que cumpram certos requisitos formais, não é boa. Os requisitos formais não garantem as qualidades que acho exigíveis. As pessoas deviam ser convidadas uma a uma pelas garantias que dessem de julgar bem.
Por aqui me tenho que ficar. Porque é que o Estado deve apoiar a criação artística e como o deve fazer é tema complexo e difícil. As soluções dadas por este Ministério da Cultura afiguram-se-me, em grande parte, más. Todavia, posso estar errado.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico