Quando a realidade irrompe na agenda política

Não fora a tragédia dos incêndios e o balanço de 2017, em Portugal, seria positivo, fruto dos resultados nas finanças públicas, na economia e também na gestão política da aliança parlamentar.

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António Costa com Mário Centeno. O Governo conseguiu vitórias importantes na frente da economia e das finanças públicas Miguel Manso

A imagem de terror das chamas a avançarem. O choque de carros, árvores, casas, pessoas transformadas em metal carbonizado, carvão e cinza. A transmissão ad nauseam pelas televisões da tragédia do incêndio que irrompeu em Pedrógão Grande a 17 de Junho vai ser a marca do ano de 2017. Uma tragédia que se repetiu a 15 de Outubro em vastas zonas do centro e do norte do país, resultando ambas em mais de uma centena de mortos, não deixando dúvidas sobre a fragilidade das estruturas públicas destinadas a proteger os cidadãos, os seus bens e as suas vidas.

Não fora a tragédia dos incêndios e o balanço de 2017, em Portugal, seria positivo, fruto dos resultados nas finanças públicas, na economia e também na gestão política da aliança parlamentar do PS com o BE, o PCP e o PEV, que suportam o Governo liderado pelo primeiro-ministro, António Costa. Mas quando ficou patente como estavam a esgaçar e até a rebentar as costuras dos serviços públicos da protecção civil, prevenção e combate a incêndios e que a própria política florestal se tinha transformado numa inoperante manta de retalhos, a bonomia perante o Governo mudou e o estado de graça deste quebrou.

Marcar o terreno

A alteração do comportamento face ao Governo foi manifesta no Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa passou a marcar o terreno do primeiro-ministro. Já antes, em relação ao desaparecimento de armas e munições do quartel de Tancos, a 27 de Junho, Marcelo tinha rumado àquela instalação militar e convocado o ministro da Defesa, assumindo a liderança de um caso que ainda hoje está por explicar.

O momento de viragem do Presidente em relação ao Governo ocorreu, porém, a 17 de Outubro, quando Marcelo, em comunicação ao país através das televisões, pressionou o primeiro-ministro em termos inéditos no que tem sido, em democracia, a relação entre os dois órgãos de soberania.

O Presidente inaugurou então um estilo interventivo quotidiano que não mais parou. E provocou no primeiro-ministro um comportamento reactivo, desorientado, de quem corre atrás da realidade e das pressões. Foi essa imagem, de quem anda a mando de Marcelo, que esteve presente desde então em toda a produção de medidas de indemnização das vítimas dos incêndios e de aprovação de legislação para alterar a protecção civil, a política de prevenção e combate de incêndios e a política florestal. Prioridades que a realidade do país impôs à agenda do Governo.

Mexidas forçadas

A primeira consequência directa da comunicação do Presidente veio logo no dia a seguir: Constança Urbano de Sousa demitiu-se de ministra da Administração Interna, revelando em carta que já o pedira duas vezes a Costa e que este não aceitara. É substituída por Eduardo Cabrita, que deixa o lugar de ministro Adjunto para Pedro Siza Vieira, o qual fica com a coordenação das pastas económicas e um ministério esvaziado.

O novo ministro da Administração Interna leva consigo o dossier da descentralização e o secretário de Estado das Autarquias Locais, Carlos Miguel. Do anterior MAI apenas é reconduzida a adjunta da Administração Interna, Isabel Oneto. José Tavares toma posse como secretário de Estado da Protecção Civil. E Rosa Monteiro substitui Catarina Marcelino na Cidadania e Igualdade, secretaria de Estado que passa para a tutela da ministra da Presidência do Conselho de Ministros e da Reforma Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques.

É a mini-remodelação forçada à qual o primeiro-ministro resistira. Tal como em Julho fora já forçado a remodelar então também por imposição da realidade. Um ano antes, em Agosto de 2016, rebentara o caso dos secretários de Estado que viajaram a convite da Galp para assistir a jogos da selecção portuguesa no Campeonato Europeu de Futebol, em França. Quando Vítor Escária, assessor do primeiro-ministro para os assuntos económicos, nomeadamente o investimento estrangeiro, é notificado como arguido, demite-se. O Governo apercebe-se, então, de que o Ministério Público está a investigar o caso e três secretários de Estado demitem-se a 9 de Julho. São eles Jorge Costa Oliveira (Internacionalização), Fernando Rocha Andrade (Assuntos Fiscais) e João Vasconcelos (Indústria), que dias depois se vêem confirmados como arguidos.

A 14 de Julho, Costa chama ao Governo novos secretários de Estado. Para substituir os três demitidos, entram António Mendonça Mendes (Assuntos Fiscais), Ana Teresa Lehmann (Indústria) e Eurico Brilhante Dias (Internacionalização). Mas há mais mexidas. Nas Finanças, Fátima Fonseca substitui Carolina Ferra como secretária de Estado da Administração e do Emprego Público. Nos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias substitui Margarida Marques, que se incompatibilizara dentro do ministério e com a representação portuguesa em Bruxelas. Na Presidência do Conselho de Ministros, Tiago Antunes substitui Miguel Prata Roque, que pedira para sair por motivos pessoais. Na Agricultura, Miguel Freitas substitui Amândio Torres, nas Florestas e Desenvolvimento Rural. E é criada a secretaria de Estado da Habitação, entregue a Ana Pinho.

Em matéria de remodelações, 2017 ainda não acabara para Costa. Já em Dezembro, mais um escândalo, o caso Raríssimas, obriga o secretário de Estado da Saúde, Manuel Delgado, a demitir-se. Foi o último caso em que a realidade dos factos alterou os planos de Costa e surgiu como um remate com contornos sociológicos de corrupção a chamuscar o Governo e a obrigar o ministro Vieira da Silva a explicar-se no Parlamento.

Trapalhadas em cascata

O caso Raríssimas seguiu-se a uma outra polémica provocada pela desorientação do executivo: a mudança do Infarmed para o Porto, uma decisão que, neste momento, não é possível perceber se vai morrer na praia.

O comportamento de reacção a pressões caracterizou a acção nos últimos meses em mais três casos, surgindo aos olhos do país como trapalhadas em cascata. Um foi a reacção do primeiro-ministro à realização de um jantar da Web Summit no Panteão Nacional, com Costa a reagir epidermicamente a críticas nas redes sociais.

Outro caso prendeu-se com a contestação social e às negociações do Orçamento do Estado para 2018. Cedendo às pressões sindicais dos professores, no Parlamento, a secretária de Estado da Educação, Alexandra Leitão, admitiu a possibilidade de o Governo aceitar negociar com os sindicatos a contagem do tempo de serviço para efeitos de descongelamento de carreiras. Apesar de Costa tentar dar o dito por não dito, a porta ficou aberta para esta reivindicação ser satisfeita em toda a função pública no futuro.

O terceiro caso surgiu também em pleno debate orçamental, com o primeiro-ministro a avocar a plenário, para ser chumbada numa segunda-feira, a proposta que o PS já aprovara na sexta anterior. Nesse projecto de lei, o BE propunha a baixa do preço da factura da electricidade para os consumidores. O negócio político tinha sido feito entre o deputado do BE Jorge Costa e o secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, que aceitou então uma medida contraditória com o que tinha assumido oficialmente em nome do Governo no relatório final do grupo de trabalho com o mesmo BE. O primeiro-ministro anulou a medida, em nome da defesa do investimento internacional em Portugal, e desautorizou o secretário de Estado da Energia, bem como o grupo parlamentar, que acabou a votar contra a proposta que aprovara três dias antes.

Turbulência orçamental

No meio de muita turbulência, o Governo viu aprovado o Orçamento do Estado para 2018, com o apoio dos seus aliados, o BE, o PCP, o PEV e o PAN. O sucesso da aprovação do OE2018 – o mais redistributivo dos últimos anos - é engrandecido pelo facto de as suas negociações terem decorrido com uma campanha eleitoral autárquica em simultâneo. Isso introduziu turbulência, levando à suspensão de informação pública sobre as negociações durante a campanha.

Turbulência que se prolongou depois das autárquicas. O facto de os comunistas terem baixado o número de câmaras de forma expressiva (menos dez) pode ter sido um factor que levou a que o PCP sindical, ou seja a CGTP e os sindicatos independentes que lhe são afectos, procurasse mostrar que não foi engolido pelo abraço-de-urso do PS. Assim, a paz social que vigorara durante dois anos foi rompida, com a contestação sindical a crescer de tom.

Se as autárquicas acabaram por funcionar como um factor de perturbação nas negociações sobre as contas públicas entre o BE, o PCP, o PEV e o Governo, o PS teve um sucesso eleitoral, batendo o recorde de câmaras presididas, que passaram de 149 para 159, contra uma descida do PSD de 107 para 98 e do PCP de 34 para 24.

Surpreendentemente, os socialistas não souberam capitalizar o resultado autárquico, perderam o pé, deixando-se submergir pelo embate da segunda onda de incêndios, a 15 de Outubro. O primeiro-ministro passou a mostrar de forma aberta uma desorientação que contrariou a sua imagem de político arguto e hábil.

Salvou-se a economia

Verdadeiro sucesso que permite ao Governo exibir louros são as vitórias na frente económica e de finanças públicas. O crescimento do PIB previsto é de 2,6%. O défice deverá ficar em 1,4%, de acordo com as previsões do executivo. O desemprego baixou para 8,5% no terceiro trimestre. Os juros da dívida pública desceram a níveis inéditos há muito, facilitando a contratação de empréstimos para pagar a dívida a juros inferiores. Duas agências de rating, a Standard & Poor's, em Setembro, e a Fitch, em Dezembro, retiraram Portugal do “lixo”.

O país saiu em Maio do procedimento por défices excessivos e no início de Dezembro viu o ministro das Finanças ser eleito para coordenar o Eurogrupo. Uma vitória de Costa que protagonizou as negociações com os líderes do Conselho Europeu, nomeadamente com Angela Merkel, que levou os chefes de Governo de partidos inscritos no Partido Popular Europeu a apoiar a eleição de Mário Centeno.

Foram estes sucessos que levaram o primeiro-ministro a afirmar sobre 2017: “Foi um ano particularmente saboroso para Portugal.” Uma apreciação que até poderia ser exacta, não fora a tragédia dos incêndios com a sua mais de uma centena de mortos.

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