Carta aberta ao ministro da Cultura
Queira pois V.Exa meter o voto de pesar onde melhor lhe aprouver. Ao Fernando Relvas não serve nem para papel de rascunho.
Exmo. Senhor Ministro da Cultura,
Dr. Luís Filipe de Castro Mendes
Tomei conhecimento do voto de pesar emitido por V.Exa. e difundido pelo seu gabinete a propósito do falecimento do artista Fernando Relvas, meu Amigo de quase 40 anos, razão pela qual me sinto obrigado a dirigir-lhe algumas palavras.
É com muita satisfação que constato que V.Exa. reconhece Relvas como “um dos mais criativos autores contemporâneos de banda desenhada” e “uma referência enquanto artista visual”. Apraz-me verificar que V.Exa se deu conta de que o trabalho de Relvas se destacou “pela inquietude e pela originalidade ao longo de mais de quatro décadas de percurso artístico”. Gosto de saber que V.Exa tem a noção de que “Fernando Relvas encontrou uma expressividade única e, simultaneamente, experimental em todas as suas obras e acções”. Que “na criação ou na circulação, explorava novas técnicas e suportes, arriscava temas e géneros menos convencionais e procurava sempre novas formas de produção”. Que “esse percurso original que o caracterizava fazia-se destacar a cada projecto e em cada traço, com a certeza de que o processo criativo era em si mesmo uma inesgotável fonte de inspiração”.
Fernando Relvas foi, efectivamente, tudo aquilo que V.Exa. afirma, e mais ainda: foi, como atestam numerosos especialistas do género, um talento superior da BD portuguesa, dono de um estilo inovador e inconfundível, que influenciou directa e decisivamente todos — mas mesmo todos — os autores de banda desenhada actualmente no activo. Criou uma linguagem única e elevou a BD portuguesa a uma nova dimensão. Tudo isto são factos, comprováveis, não meras opiniões.
Acontece que, por circunstâncias diversas (que seria fastidioso e inútil descrever, mas que, como V.Exa decerto saberá — ainda que não por experiência própria —, se verificam com alguma frequência na história da Arte), Relvas entrou na fase final da vida mais pobre do que sempre viveu, numa situação de extrema carência económica agravada pela doença de Parkinson que entretanto lhe foi diagnosticada.
Acontece também que, em 2015, nos tempos finais do governo PPD/CDS de má lembrança, Fernando Relvas, no limiar do desespero económico, venceu o seu natural orgulho de artista e homem livre e candidatou-se ao subsídio de mérito atribuído pelo Fundo de Fomento Cultural. Logo a seguir o governo mudou, a Cultura voltou a ser ministério, o novo ministro não aqueceu o lugar, chegou V.Exa. O processo do Relvas (com a referência 2.4.4. – 2912/15), esse, continuou parado.
É provável que V.Exa. não tenha de memória aquilo em que consiste o referido “subsídio de mérito cultural”. Permito-me assim recordar-lhe que se trata de uma medida legal recorrente do decreto-lei 415/82 de 7 de Outubro, quando era primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão, António Ramalho Eanes presidia a República, e Francisco Lucas Pires ocupava a cadeira onde V.Exa. actualmente se senta.
O decreto, redigido aliás com invulgar clareza para um texto legal, é inequívoco quanto às intenções do legislador, expressas logo no primeiro parágrafo: “Pretende-se com este diploma possibilitar a atribuição a alguns artistas e autores de reconhecido mérito cultural de subsídios que os ajudem a ultrapassar situações de, por vezes, pungente carência económica.” Uma prática que, até então, lê-se mais adiante, acontecia apenas “em casos pontuais”, pelo que a lei vinha “definir o regime jurídico relativo à concessão de subsídios a artistas e a autores carecidos economicamente e que pela sua obra revelem mérito cultural”. Da aplicação da lei ficou incumbido o ministro da Cultura a quem, através do Fundo de Fomento Cultural, competiria analisar e decidir sobre os subsídios a atribuir.
Em circunstâncias normais, a atribuição desse subsídio a Fernando Relvas não deveria levantar dúvidas — e com certeza não levantou, como parecem demonstrar as amáveis palavras inscritas no voto de pesar da autoria de V.Exa. De facto, se “um dos mais criativos autores contemporâneos de banda desenhada” que é também “uma referência enquanto artista visual”, que se destaca “pela inquietude e pela originalidade ao longo de mais de quatro décadas de percurso artístico”, se um artista digno desta apreciação não tem mérito cultural, não sei quem o terá.
Mas acontece também que essa candidatura ficou perdida nas gavetas, submetida com certeza aos trâmites sempre insondáveis da burocracia. De um certo ponto de vista, até se entende: os funcionários de V.Exa — e mesmo V.Exa — terão lido muitos livros e visitado muitos museus e panteões, conhecerão todos os festivais literários d’aquém e d’além-mar, mas não sabem ao certo o significado da expressão “carência económica”. É natural, pois não é fácil definir uma coisa que de todo se desconhece.
E assim o tempo foi passando, sem que nunca o Relvas tenha tido, sequer, uma resposta do FFC. De uma das últimas vezes que falámos, o Relvas, com o sentido de humor ácido que nunca perdeu, dizia-me: “Devem estar à espera que eu morra.” Tinha razão.
Ora o subsídio em causa, sendo destinado a situações excepcionais, não é uma prebenda nem um favor do Estado, mas sim um direito dos cidadãos que reúnam as condições previstas na lei que o consubstancia: a “comprovada situação de carência económica” e o “reconhecido mérito cultural” do artista ou autor. Um direito do Estado democrático, pois, e que eu, como cidadão e contribuinte, tenho a obrigação de exigir que seja respeitado, o que não aconteceu. Pelo menos neste caso, que não é com certeza o único.
Há mais de um ano, em Outubro de 2016, perante o agravamento da situação (física e económica) do Relvas, e alertado para a candidatura ao subsídio que, mais de um ano depois, continuava sem resposta, alguns amigos que também eram, simultaneamente, do círculo de conhecimentos de V.Exa e do Fernando Relvas, tentaram sensibilizar V.Exa. e os serviços de V.Exa. para a urgência da situação. Não se tratava de contornar a lei por via de qualquer tráfico de influências — que comprovadamente não tenho. Pelo contrário: tratava-se apenas de tentar fazer com que a lei fosse cumprida, na letra e no espírito.
Esses contactos foram feitos, em várias ocasiões, mas o certo é que entretanto outro ano se passou, e nada aconteceu. Nos últimos meses, a situação física do Relvas piorou. Não tendo ele nenhum canal directo de comunicação com V.Exa, foram os mesmos amigos que procuraram uma vez mais sensibilizar os serviços do ministério de V.Exa — mas, mais uma vez, nada aconteceu. (Ressalve-se aqui que, num país normal, nada disto seria necessário: o caso seria tratado com a urgência que, por definição, é essencial para resolver as situações de carência económica, e Relvas receberia a prestação a que tinha direito sem mais delongas. Mas isso é nos países normais, e o Relvas teve a má sorte de nascer português.)
Assim foi, até que o Relvas morreu. E esta foi a única altura em que os serviços que V.Exa superiormente dirige funcionaram com celeridade, na modalidade do supracitado voto de pesar. É bonito, as palavras são simpáticas, mas chega tarde e não serve para nada.
Deste modo, na qualidade de Amigo que fui, que sou, do Fernando Relvas, agradeço, por boa educação, mas declino, por indignação, o voto de pesar expresso por V.Exa. Do ministro da Cultura de Portugal, exige-se que esteja atento em tempo útil aos artistas e autores do seu país. Palavras amáveis quando morrem, de pouco servem, se quem as profere deles não fez caso enquanto vivos.
Por delicadeza e decoro, escuso-me a reproduzir aqui o que, estou certo, o Fernando Relvas diria, se pudesse, ao receber os pêsames e o profundo lamento de V.Exa. Mas V.Exa., vate medalhado, não terá dificuldade em chegar lá, mesmo tratando-se de vocábulos que não fazem parte do léxico culto de V.Exa.
Queira pois V.Exa meter o voto de pesar onde melhor lhe aprouver. Ao Relvas não serve nem para papel de rascunho.