Em busca do passado

O espanhol Javier Cercas volta a ter a Guerra Civil como cenário, dialogando agora com Soldados de Salamina, a sua obra-prima.

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É a obscuridade, o escuro, que nos ilumina: O Monarca das Sombras Daniel Rocha

O Impostor, o anterior romance do espanhol Javier Cercas (n. 1962), começa com a frase “Eu não queria escrever este livro”. Mas depressa o leitor se apercebe de que se trata apenas de uma face do dilema em que o escritor se encontrou quando lhe surgiu a ideia de escrever sobre um caso real, pois sentia que havia naquela personagem qualquer coisa que lhe dizia profundamente respeito, mas que ao mesmo tempo lhe levantava alguns problemas morais. Em O Monarca das Sombras — o mais recente livro, e que cronologicamente se segue a O Impostor — Cercas retoma a ideia da recusa em contar uma história, desta vez sobre alguém da sua família que serviu o exército de Franco, porque contá-la equivaleria “não só a assumir a responsabilidade do seu passado político mas, também, do passado político de toda a minha família”. E ela não queria assumir essa responsabilidade pois não via qualquer necessidade de o fazer, já lhe chegava, diz, “ter de aprender a viver com isso”. Mas durante vários anos andou a acumular material sobre esse seu familiar: a recolher depoimentos de quem ainda estava vivo, a procurar documentos, a visitar os lugares onde viveu. O Monarca das Sombras é também a história dessa demanda, e Cercas acaba a contá-la aos leitores, a si próprio, e à sua mãe, sobrinha do protagonista. Também à semelhança de O Impostor, este é um romance “sem ficção”, que utiliza a História para compor um mosaico de factos e lançar dúvidas.

Durante grande parte da sua vida, Cercas viveu a ouvir falar na personagem deste livro que acabou por escrever: um seu tio-avô, Manuel Mena, jovem falangista de dezanove anos que morreu na batalha do Ebro — a mais sangrenta de toda a Guerra Civil Espanhola — em Setembro de 1938, quando tinha o posto de alferes, depois de ter sido ferido cinco vezes durante a guerra. No começo das suas investigações pouco mais sabia do que isto. Assim, O Monarca das Sombras acaba por cruzar duas histórias, a de Manuel Mena e a da procura de Javier Cercas pelo passado do seu familiar, tudo isto ao mesmo tempo que faz uma profunda reflexão sobre a nossa relação com o passado, sobre as suas implicações a nivel pessoal e social.

Cada novo livro de Javier Cercas não se parece em quase nada com algum dos anteriores. A tentação de muitos escritores, sobretudo quando corre bem um livro, é repetir a sua forma, talvez só um pouco alterada. Ou mesmo prosseguir no assunto ou no registo de estilo. Mas há ideias que preocupam um autor e que ele explora uma e outra vez, é o que faz Cercas mas inovando sempre na forma. Ele assume a ideia de que o romance é por definição um género de géneros, onde cabe tudo, por isso não espanta que O Monarca das Sombras tenha passagens que pareçam retiradas do esboço de uma minuciosa biografia, outras vezes de um ensaio com propósitos históricos e políticos, ou de um “thriller” de guerra com preocupações existencialistas, negro e duro, ou de um romance de iniciação, ou mesmo de uma entrevista com recortes literários. Javier Cercas não se propõe misturar géneros: o romance é para ele uma espécie de ‘cocido madrileño’ — como uma vez referiu numa entrevista — um prato onde cabe tudo. Se por vezes os seus romances parecem thrillers existenciais, é porque ele procura uma verdade que tem sempre questões morais, existenciais. Por outro lado, são também ‘anti-thrillers’, no fim o leitor nunca sabe quem é o ‘assassino’.

Apesar de nunca repetir a forma, há uma característica a que Cercas recorre desde Soldados de Salamina (ASA, 2002) — considerado por muitos como um dos mais importantes romances espanhóis das últimas décadas — interrogar o leitor a partir de um centro que se vai deslocando ao longo da narrativa. O Monarca das Sombras é outro bom exemplo dessa deslocação (como era também muito evidente em As Leis da Fronteira) a que o leitor é obrigado: sendo o jovem soldado morto, Manuel Mena, o suposto centro, o olhar do leitor, como se fosse direccionado por uma câmara de filmar, vai divagando por acontecimentos do passado que só remotamente se ligam ao protagonista.

O Monarca das Sombras – o título vem de um episódio da Odisseia, em que Aquiles diz preferir ser um camponês modesto do que um monarca do reino da morte — é escrito diante do leitor, a sua prosa ágil vai dialogando com outros livros do autor ao mesmo tempo que busca uma resposta para a pergunta sobre quem foi Manuel Mena. Uma resposta que nunca chega, porque como sempre nos romances de Cercas, a resposta é a própria busca, é o próprio livro. Não há uma resposta clara, unívoca. Há respostas sempre ambíguas, contraditórias, e sobretudo irónicas. É essa obscuridade, esse escuro, que nos ilumina; é esse silêncio que torna o romance eloquente. De uma maneira ou de outra, este romance que torna a ter a Guerra Civil Espanhola como cenário de uma das suas histórias, acaba por ser, mais do que uma continuação, o final de Soldados de Salamina.

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