A raríssima coluna vertebral
A Raríssimas é o certificado da anomia cívica. Más notícias para os liberais.
A inacreditável história da Associação Raríssimas perturba até os estômagos dos mais duros. Perturba até ao limiar do vómito. E não apenas porque revela uma confrangedora incapacidade do Estado para fiscalizar o dinheiro público: neste filme sórdido, também a sociedade civil mostrou o seu profundo deleite com a promiscuidade, a falta de exigência e a submissão a todo o tipo de abusos e prepotência. A história é um nojo porque valida a facilidade com que a corrupção e o nepotismo se instalam numa associação privada sem que ninguém fosse capaz de as travar a tempo. Sim, desta vez a culpa não é apenas do ministro, ou do secretário de Estado, ou dos políticos, ou do Governo: é também falha de uma sociedade civil tolerante aos dirigentes que exigem aos seus subordinados que se levantem à sua passagem, que ouve sem náusea nem protesto a presidente da Raríssimas dizer que o filho é o seu “herdeiro da parada”, que perante todas as suspeitas não denuncia, não questiona, não critica, não dá um murro na mesa. A Raríssimas é o certificado da anomia cívica. Más notícias para os liberais.
Nesta história de muitos vilãos há poucos heróis – uma ex-dirigente que dá a cara e dois ex-tesoureiros, com destaque para Jorge Oliveira Nunes que teve a coragem de se indignar com as manobras de Paula Brito Costa e de as tornar públicas. Não nos venham agora dizer que ninguém sabia o que se estava a passar. Se tantos famosos andaram por lá e não viram nada, não ouviram nada, não suspeitaram de nada é porque usaram esses cargos, não para serem úteis à comunidade, mas apenas para expor a sua vaidade ao público. O BMW estava à porta. Os quilómetros extra ou as facturas dos vestidos passavam pelo secretariado, passavam pela contabilidade e passavam pelo controlo da Assembleia Geral, onde gente experiente como Vieira da Silva esteve um par de anos. Ninguém viu nada, ninguém ouviu nada, ninguém suspeitou de nada?
Tudo bem, vamos às práticas quotidianas. Os funcionários sabiam que tinham de se levantar à passagem de Sua Excelência e fizeram-no sem protesto. Muitos sabiam do plano dinástico que a dona daquilo tudo que tinha na manga, sabiam das ameaças e da intimidação que fazia sobre quem questionasse a sua iluminada inteligência e, que se saiba, nunca reagiram. É esta tolerância com o abuso que torna o caso insuportável. Porque certifica a proverbial tolerância de tantos à prepotência e à corrupção. E ao relativismo que leva muitos a dizer que queixinhas e invejosos há em todo o lado. Que obrigar alguém a levantar-se à passagem da majestade é apenas uma pequena extravagância. Que alguém ter um carro pago por uma IPSS e ainda por cima cobrar quilómetros pode ser estranho, mas que é lá com eles, os de cima, os que têm desígnios inalcançáveis pelos de baixo. Que pagar com o cartão de crédito da associação roupa de marca com a justificação que a honra da Raríssimas se avalia pelo tailleur da presidente e não pelos serviços que presta também acontece noutros lados.
A existência desta cultura de subserviência, de falta de coragem, de medo, assusta. O respeitinho ganha aqui o estatuto de atitude oficial. Começa nas praxes onde meia dúzia de brutos se deliciam a humilhar os colegas e onde os colegas se submetem com deleite à humilhação. Continua na turma que aceita que os mais fortes se imponham aos mais fracos. Acentua-se nas duras disputas de acesso ao mercado de trabalho. E cristaliza-se quando chegar a vez dos humilhados se vingarem quando chegarem ao poder. Forma-se assim uma sopa mole onde a liberdade cívica, a consciência ética, a noção do dever, o respeito pelos mais fracos se esvanece sempre que aparece na cúpula uma chefe com a desfaçatez e o prazer pela intimidação como a que a presidente das Raríssimas foi revelando ao longo dos tempos. Essa forma de estar morna, de brandos costumes, limita-nos a autonomia, torna-nos queixinhas e leva-nos a pensar que a salvação da Pátria, do Mundo, está não em nós mas no Estado ou no Governo. É por isso que anda agora meio mundo a pedir demissões dos políticos. As dezenas, ou centenas, de figuras públicas que passaram pela Raríssimas escapam entre as pingas da chuva. Limitaram-se a tapar os olhos e os ouvidos. A fazer o que os “bons pais de família” fazem todos os dias.
Essa forma de estar letárgica e demissionária ajuda explicar a condescendência com que o país, todo o país, assistiu aos desastres do Verão. A morte de quatro pessoas na Galiza na vaga de incêndios de 15 de Outubro arrastou centenas de milhares de pessoas para as ruas das principais cidades; cá foi o que se viu. Mas ajuda também a explicar o branqueamento de Tancos ou o empenho de um dos mais credíveis ministros deste Governo, Vieira da Silva, em salvar a pele recorrendo ao lamentável hábito de chutar para canto. Ele não sabia de nada, diz. Acreditemos. Mas não faça de nós tolos. Dizer, como disse, que as queixas que recebeu em Agosto não revelavam actos de “gestão danosa” é pura semântica – a carta de 9 de Agosto falava de “irregularidades”, qualificativo que está longe de se enquadrar numa gestão meritória. Um ministro tem o dever político de saber o que se passa com a gestão de dinheiros públicos que gere
Manuel Delgado, o secretário de Estado, fez o que devia: demitiu-se. Não tinha outra forma de responder ao desafio que a cidadania lhe colocava, desafio que no editorial de terça-feira do PÚBLICO, assinado por David Dinis, se colocava nestes singelos termos: “Alguém vai ter de nos explicar devagarinho como é que o Estado dá 327 mil euros do Fundo de Socorro que acabou por pagar estudos de um consultor” (o próprio secretário de Estado da Saúde).
A vergonha, e a grande lição, que Paula Brito Costa deixa é a certeza de que neste país se pode ser como ela é e fazer o que ela fez durante anos sem que apareça alguém para lhe fazer frente. Que há maus no mundo, que há personagens de opereta com vocação para ditadores já sabíamos; mas não sabíamos que numa associação apoiada pela generosidade das pessoas e pelo Estado fosse possível abusar de forma tão flagrante e tão tolerada durante anos como na Raríssimas. Isso é que dói. Isso é que custa. O salazarismo subserviente completado pelo capitalismo anacrónico e pelo esquerdismo conservador e anestésico deu no que deu: num Estado barrigudo, labiríntico e disfuncional e numa sociedade amorfa e tolerante a pequenos ditadores. Raríssimo é haver quem, como Jorge Oliveira Nunes, tenha coragem para bater com a porta e travar alguém que se serviu da dor dos outros para pavonear a sua execrável vaidade. Uma vénia...