Introdução ao artista
O documentário de Susan Lacy sobre Steven Spielberg (TVCine2, dia 12) sugere aqui e ali uma defesa do trabalho do realizador, mas fica-se por uma introdução ao seu trabalho. Já não é mau.
Não é por acaso que as primeiras imagens que vemos no documentário de Susan Lacy sobre Steven Spielberg sejam de Lawrence da Arábia, de David Lean, o filme que o autor de Tubarão credita como o “ponto zero” do seu desejo de cinema. As imagens e depoimentos do grupo de amigos dos movie brats californianos que são seus contemporâneos (George Lucas, Francis Coppola, Brian de Palma marcam todos presença) confirmam como Spielberg sempre foi o mais “certinho” e “clássico” deles todos. A contradição persiste ainda hoje: onde é que encaixamos o cineasta? Nas máquinas de suspense e emoção como Tubarão, Parque Jurássico, Guerra dos Mundos, os filmes de Indiana Jones? No cineasta mais sério e ponderado de A Cor Púrpura, A. I., Império do Sol, A Lista de Schindler? Na moderna consciência liberal classicista de O Resgate do Soldado Ryan, Munique, Lincoln ou A Ponte dos Espiões?
Susan Lacy prefere explorar essas contradições olhando para o percurso do homem: o realizador que queria ao mesmo tempo ser um tarefeiro de estúdio à moda antiga rodeado por uma equipa recorrente de colaboradores, capaz de fazer de tudo desde que esse “tudo” fosse feito sempre a pensar no espectador. Spielberg sempre esteve deslocado no tempo, de algum modo, parece-nos dizer o filme; foram os tempos que de vez em quando acertaram o passo com ele. E continua a ser assim — basta ver como os seus filmes mais recentes, independentemente do seu sucesso, se agarram a uma ideia de cinema para um público alargado que parece estar em vias de desaparecimento devido à desmultiplicação dos modos de aceder ao cinema. Como a referência a Lawrence da Arábia sublinha, Spielberg filma para a experiência do espectador na sala; como pode ele continuar a ser relevante hoje em dia?
Spielberg não responde. Em parte porque tem consciência que não pode meter o Rossio na rua da Betesga (e mesmo assim tem duas horas e meia), mas em parte porque o seu papel não é o de fazer uma exegese. Por opção, o filme passa ao lado do Spielberg-produtor e do Spielberg-executivo (as suas múltiplas produções dos anos 1980 e a fundação do estúdio Dreamworks não são sequer referidas), preferindo concentrar-se no desenvolvimento da sua personalidade de realizador, com A Lista de Schindler como “ponto fulcral” a partir do qual o seu cinema mudou de vez. A realizadora foi durante muito tempo a responsável pela linha de documentários sobre arte e cultura American Masters no serviço público PBS, e isso nota-se imediatamente neste trabalho de factura televisiva clássica, anónima: entrevistas, excertos de filmes, imagens de arquivo, tudo em modo “história oral”, sem voz off, com os próprios depoimentos a fazer avançar a “narrativa”. Spielberg esboça aqui e ali uma defesa do valor artístico do cinema do realizador, mas acaba por centrar-se numa simples introdução ao cineasta mais importante da Hollywood do último meio século. Deixa água na boca, sim, mas não o vamos recordar como mais do que um ponto de partida para ir olhar outra vez para o seu cinema.