Ferrovia: o essencial e o acessório

Nenhuma das reacções ao nosso Manifesto refere que a UE decidiu há muito que a Europa deve ter um sistema ferroviário comum.

O Manifesto sobre a ilha ferroviária portuguesa, subscrito por 39 cidadãos preocupados com as consequências económicas resultantes da inação dos governos relativamente à ferrovia, tem provocado bastantes reacções, umas mais construtivas do que outras, mas com três características comuns e bastante típicas da política e da sociedade portuguesas: (a) transformar problemas relativamente simples de compreender em problemas tão complexos que se tornam, por vezes, incompreensíveis e intratáveis; (b) dar grande importância ao acessório em vez de se preocuparem com o objectivo principal; (c) apoiar governos e ministros nas suas posições políticas e técnicas, ainda que frequentemente erradas, com objectivos que nem sempre são claros, mas que estão na massa do sangue de muita gente. Esta última razão tem permitido erros sucessivos dos governos, que vão desde a obsessão com as auto-estradas ao abandono da ferrovia, do privilégio dado aos bens não transacionáveis ao abandono do centro das cidades.

Dou como exemplo os textos publicados no PÚBLICO em 19 e 25 de Outubro, da autoria do engenheiro Pompeu Santos e do Dr. Manuel Tão, que sofrem de algumas destas tentações:

1. O engenheiro Pompeu Santos chega ao pormenor de se preocupar com a designação usada no Manifesto de bitola europeia, dizendo que a Europa tem várias bitolas diferentes — Península Ibérica, Irlanda e Finlândia /Rússia, que seriam ilhas ferroviárias, mas que não impediram o progresso das suas economias. Pois é, mas a esmagadora maioria das exportações portuguesas são destinadas aos outros países europeus — Alemanha, França, Reino Unido, Holanda, Bélgica, Itália e por aí fora — que, independente do nome que lhe dão, têm uma ferrovia com bitola comum, a que nós não poderemos chegar se não adoptarmos a mesma bitola. Esta é a questão e tudo o resto são, nesta fase, devaneios.

2. A questão da Irlanda, uma ilha, não merece grande discussão, utiliza o barco e o transbordo para a ferrovia europeia para a previsível distribuição das suas exportações continentais e internamente qualquer bitola serve. Quanto à Finlândia e à Rússia têm relações comerciais muito fortes entre si e há muitos anos e trata-se de um problema económico completamente diferente de Portugal, ainda que provavelmente também gostariam de ter a mesma bitola dominante na Europa. Claro que nós poderíamos fazer o mesmo que a Irlanda, mas seria mais caro do que a ferrovia para exportações nacionais destinadas ao centro da Europa, devido aos transbordos, e levariam mais tempo a chegar. Sendo que muitas das nossas exportações — garrafas de vidro, componentes de automóvel, produtos agrícolas, etc. — são entregues just in time, isto é, têm de chegar diariamente às 8h da manhã à porta das fábricas e dos armazéns, não se compadecendo com a frequência oferecida pelo transporte marítimo.

Há, contudo, questões em que o engenheiro Pompeu Santos tem carradas de razão, nomeadamente que a ferrovia existente em Portugal é velha e tem traçados desadequados e que tentar a sua modernização para tornar o sistema interoperável, dizemos nós, custaria mais dinheiro de que construir linhas novas, como aconteceu com a linha de Lisboa ao Porto. Concordamos ainda com a afirmação de que há pessoas que apresentam argumentos chocantes e falaciosos quando defendem que existem soluções técnicas alternativas à mudança de bitola, bem como quando refere a indigestão de auto-estradas e o crescimento irresponsável da dívida. Ou seja, há mais coisas que nos unem do que aquelas que nos distanciam e estas são irrelevantes para o objectivo final: chegar com as mercadorias portuguesas ao centro da Europa por via ferroviária, isto é, pondo as barbas de molho relativamente ao que, previsivelmente, vai acontecer no futuro.

O outro texto publicado neste jornal, do Dr. Manuel Tão, é um caso mais complicado e que se enquadra como uma luva na característica (c) acima. Trata-se de uma adesão pouco consistente às teses do Governo e dos lobbies da rodovia e de uma penada considera, sem fundamentar, que não há problema nenhum em fazer o transbordo das mercadorias em Irun, desconhece olimpicamente todas as linhas de mercadorias em bitola europeia já operacionais e em construção em Espanha, bem como as ligações já feitas e a fazer (três ligações) através dos Pirenéus para França, para acabar a dizer que a ilha ferroviária portuguesa já existe, mas que não nos devemos preocupar com o assunto. Ámen.

É interessante que nenhuma das reacções ao nosso Manifesto se refira a que a União Europeia decidiu há muito que a Europa deve ter um sistema ferroviário comum, isto é, interoperável, pagando para isso centenas de milhares de milhões de euros, como nada dizem do facto de vários países europeus não quererem mais camiões nas suas estradas e estarem a criar portagens que serão tudo menos baratas, até ao dia que isso se torne economicamente insuportável para o seu atravessamento. Desconfio que os detractores do Manifesto também não sabem que existe hoje na Europa e em grande parte do mundo civilizado uma coisa chamada protecção ambiental, que, certo ou errado, não vai parar de colocar obstáculos ao consumo de combustíveis fosseis, que os camionistas portugueses teimam em comprar em Espanha. Além, naturalmente, do congestionamento das auto-estradas, de que esses países também não gostam.

Para terminar, o que parece evidente é que algumas pessoas e governos raramente se preocupam em olhar o futuro, mesmo quando este se aproxima de forma cada vez mais rápida, da mesma forma que raramente aprendem com os erros cometidos e não sabem ou não querem prever e antecipar estrategicamente os acontecimentos. Só que esse futuro existe e não se compadece com a nossa distração, acabando por nos cair em cima da cabeça com estrondo, o que neste caso da ferrovia representa uma limitação grave à independência e ao progresso da economia portuguesa.

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