A falácia da bitola e a “ilha ferroviária”

Contrariamente ao referido no “Manifesto”, Portugal não se arrisca a tornar-se uma “ilha ferroviária”. Já o é, de facto.

Em 29/07/2017 foi tornado público um manifesto, subscrito por 39 personalidades oriundas do mundo empresarial, académico e da sociedade civil, segundo o qual Portugal arriscar-se-á a tornar-se uma “ilha ferroviária” em virtude de os parcos investimentos no sector ferroviário previstos até 2020 não contemplarem a alteração da bitola (afastamento entre bordos internos dos carris), do atual padrão ibérico, de 1668mm, para o da Europa além-Pirenéus, de 1435mm.

Fundamentalmente, a tese defendida pelos subscritores do “Manifesto Portugal Ilha Ferroviária” apoia-se em duas linhas de força: a primeira sustenta-se na existência de um alegado “programa de conversão de bitola em curso”, decorrendo em Espanha e afetando a totalidade da sua rede ferroviária convencional; a segunda apresenta a diferença de bitolas entre Portugal e a Europa além-Pirenéus como explicação para a baixa utilização do modo ferroviário no transporte de cargas, designadamente o correspondente aos movimentos de exportação e importação de bens físicos transacionáveis.

Por assentar num conjunto de premissas cuja fundamentação se afigura assaz duvidosa, impõe-se tecer um conjunto de considerações sobre o “Manifesto Portugal Ilha Ferroviária”.

Desde logo, é importante salientar que a alegada “conversão de bitola” dos 12.000 Km de linhas férreas convencionais, geridas pelo Administrador de Infraestructuras Ferroviárias de España, é mera fantasia. Não existe em Espanha qualquer “programa de migração de bitola” em curso na sua rede ferroviária convencional. O que veio a surgir, a partir do ano de 1992, traduziu-se na materialização de um novo sistema de linhas férreas com mais de 2500 Km, de bitola europeia (1435mm), exclusivamente dedicado à circulação de composições de Alta Velocidade de Passageiros (AVE e Alvia), em sobreposição à rede convencional de via larga (1668mm), de utilização polivalente, quer nos serviços de índole regional e local, quer como suporte a todos os tráfegos de mercadorias. Igualmente absurda é a ideia segundo a qual a diferença de bitolas no encontro entre redes ferroviárias ibérica e francesa, nas fronteiras pirenaicas, impede a existência de composições de mercadorias diretas, entre um sistema e o outro. Desde 1950, o trânsito de composições de mercadorias entre a Península Ibérica e a restante Europa processa-se mediante um sistema de mudança de eixos aos respetivos vagões. Nos pontos fronteiriços de Hendaye (País Basco) e Cerbère (Catalunha), composições inteiras mudam diariamente os seus eixos, de 1668mm para equivalentes de 1435mm (e vice-versa), submetendo-se a uma operação semi-automatizada, com a duração de cerca de 90 minutos.

Que consequência teria, no aumento de tráfego ferroviário de mercadorias, entre a Península Ibérica e a restante Europa, a poupança deste tempo? Os subscritores do “Manifesto” não adiantam, como fundamento às suas teses, qualquer valor da Elasticidade da Procura-Tempo para comboios internacionais de mercadorias. De todas as suas cargas terrestres internacionais, Portugal conta com um terço, correspondente a exportações/importações destinadas/oriundas à Europa além-Pirenéus. Um movimento com início no Terminal de Lisboa-Bobadela e término na triagem de Mannheim (Alemanha) representa, em condições normais, incluindo mudança de eixos em Hendaye, uma viagem de cerca de 50 horas. Que ganhos de protagonismo e quota de mercado teria o transporte ferroviário caso se eliminassem cerca de duas horas, correspondentes à mudança de eixos nos Pirenéus?

Estranhamente, o “Manifesto”, ao mesmo tempo que alude a uma “conversão de bitola” inexistente, ignora desenvolvimentos tecnológicos reais com repercussão a grande escala no parque de vagões dos operadores de carga do país vizinho, consistindo na aplicação a quase todos os veículos do “eixo de geometria variável”, a partir do ano de 2018. Capaz de se ajustar, através da passagem por um sistema de guiamento mecânico fixo, intercalado entre linhas ibéricas (1668mm) e europeias (1435mm), o “eixo telescópico OGI/AZVI” tornará obsoleta a muito curto prazo a operação de mudança de eixos nos Pirenéus, permitindo igualmente reduzir custos operacionais relacionados com o aprovisionamento de rodados de ambos os tipos nas fronteiras. A difusão generalizada do “eixo telescópico” remete a conversão de bitola das linhas convencionais ibéricas para um horizonte temporal indefinido e longínquo.

Finalmente, o que de mais absurdo se encontra no “Manifesto” é a tentativa de se encontrar no fator “bitola” explicação para a reduzida quota de mercado do transporte ferroviário de cargas (5 a 6%) nos movimentos intra-ibéricos, os quais correspondem a não menos de dois terços de todas as mercadorias internacionais que cruzam as fronteiras de Portugal por via terrestre. Das três fronteiras ferroviárias (de um total de cinco existentes) que Portugal mantém em serviço, nenhuma há onde se verifique uma diferença de afastamento entre bordos internos dos carris. A bitola de 1668mm existente em Vilar Formoso é exatamente aquela que se encontra em Fuentes de Oñoro, o mesmo se podendo dizer das passagens fronteiriças de Valença/Tui e Elvas/Badajoz. A realidade aponta o óbvio: a inexistência de diferenças de bitola esvazia de conteúdo a emergência de conversão das linhas férreas portuguesas, no sentido de conferir um maior papel ao modo ferroviário, no suporte às relações funcionais, nas quais se traduz o comércio bilateral entre Portugal e Espanha, seu maior fornecedor e parceiro económico na União Europeia.

Excluída a “questão da bitola” como explicação do quase insignificante papel do caminho-de-ferro no transporte de cargas entre Portugal, Espanha e a restante União Europeia, emerge inevitavelmente a interrogação: quais as causas que remetem a ferrovia para a condição de marginalidade nas escolhas das empresas e dos cidadãos? Desde a adesão de Portugal às Comunidades Europeias, há mais de três décadas, o poder político encontrou no modo rodoviário um instrumento estratégico, relegando a ferrovia para um processo de desinvestimento contínuo. De uma rede ferroviária com extensão superior a 3600 Km, passou-se para 2400 Km em funcionamento nos dias de hoje, consistindo num somatório de linhas e ramais desconexos, os quais, desembocando num só eixo troncal compreendido entre Braga e Faro, não permitem obter cobertura territorial, conectividade e economias de escala. Regiões inteiras deixaram de ter qualquer ponto de acesso ou egresso a um sistema, tornado residual. A opção ferroviária em Portugal tornou-se escassa, localizada e inflexível, a ponto de não ser considerada viável pelas empresas para a deslocação de cargas, nem tão-pouco pelos cidadãos no atendimento da sua mobilidade pessoal.

Num país desprovido de rede ferroviária, e caracterizado por ser o único continental da União Europeia em que a quilometragem de auto-estradas (3100 Km) suplanta a das vias férreas, discutir problemas de bitola afigura-se tão espúrio quanto escolher cortinas para um edifício sem janelas. Contrariamente ao referido no “Manifesto”, Portugal não se arrisca a tornar-se “ilha ferroviária”. Já o é, de facto. Os sucessivos anúncios de “investimento na ferrovia”, intencionalmente esvaziados de cometimento por parte de decisores políticos completamente desinteressados, há muito se tornaram lugares-comuns de monotonia e descrédito. Encontrará Portugal na Liberalização do Sector Ferroviário, em força a partir de 2019, a dinâmica externa e o investimento capazes de o retirar ao marasmo a que a sua sociedade o condenou?

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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