Um Monty Python e um Gato Fedorento em Viseu: “A Igreja achava mesmo que ia ser derrubada por A Vida de Brian?"
O politicamente correcto “está a impedir o desenvolvimento da comédia”, mas hoje Michael Palin não escreveria um sketch sobre o islão. Entrevistado por Ricardo Araújo Pereira, chamou centenas de pessoas à 3.ª edição do festival Tinto no Branco.
“Este homem não é um homem comum”, começou Ricardo Araújo Pereira, fazendo de uma fala do sketch do super-homem que arranjava bicicletas dos Monty Python a sua apresentação elogiosa de Michael Palin. Estes são dois homens da comédia e dos livros que tiveram “uma conversa completamente diferente”, claro, nesta sexta-feira à noite em Viseu perante centenas de pessoas — e sob um frio de rachar. Palin defendeu, num tempo em que considera que o politicamente correcto “está a impedir o desenvolvimento da comédia”, que “o humor ilumina tudo e nada [há de] demasiado sério que não se consiga defender contra o humor. A Igreja achava mesmo que ia ser derrubada por A Vida de Brian?”.
A conversa marcou a abertura da 3.ª edição do festival literário Tinto no Branco, inicialmente prevista para a Tenda Jardins de Inverno, mas depois transferida para o exterior do Solar do Vinho do Dão — o centro nevrálgico do evento — devido à prevista e confirmada afluência do público, que superava os 200 lugares previstos da tenda e assim encontrou espaço nos cerca de 600 lugares sentados disponíveis e muitos outros em pé. “Já alguém morreu?”, atirou a certa altura Michael Palin, dos Monty Python, escritor, viajante profissional, actor e apresentador de TV. Aos dez minutos de conversa ao ar livre, com sete graus nos termómetros, Ricardo Araújo Pereira já tinha puxado uma mantinha sobre as pernas. “Pareço uma velhinha”, disse a uma audiência que nunca deixou de sorrir e que terminou a hora de conversa com uma ovação de pé. “Isso, activem a circulação”, brincou Palin antes de abandonar o palco.
Esse palco pertencera aos dois, entrevistador e entrevistado, fã e ídolo. A conversa provou logo no título como os Monty Python são, entre muitas coisas, infinitamente citáveis. Comprovou que falar dos limites do humor, do politicamente correcto e, claro, de papagaios mortos não tinha rival no frio viseense. E solenizou-se então quando Ricardo Araújo Pereira, que acaba de lançar um livro de crónicas em torno do que descreve ser o seu reaccionarismo quanto a elementos tão variados quanto os novos media até à língua, perguntou a Michael Palin como achava que seria recebido hoje um sketch como o do lenhador travesti ou A Vida de Brian (1979). Palin responde: “É difícil saber, porque ainda são populares.”
O filme dos Monty Python (formados por John Cleese, Graham Chapman, Eric Idle, Terry Gilliam, Terry Jones e Palin) foi recebido com boicotes, protestos e muito debate na época. A rábula do lenhador travesti é um dos intemporais números dos Python e o seu protagonista é Palin, que também escreveu sketches como aquele que ficou reconhecível pela sua exclamação “Ninguém espera a Inquisição Espanhola!”. Para Michael Palin, é uma questão em aberto saber “se se consegue agora escrever algo fresco sobre travestismo, transgénero ou autoritarismo religioso”.
O homem que é conhecido, como lembrou Araújo Pereira, como “o Python simpático” passou depois a responder à sua própria pergunta: “Escreveria hoje algo sobre o islão? Nem pensar, nem pensar, porque há por aí pessoas perigosas.”
“[Mas] gostaria de escrever sobre toda essa área da tolerância e intolerância. E gostaria de escrever algo sobre o politicamente correcto hoje, porque acho que está a impedir o desenvolvimento da comédia. Estamos todos a fazer coisas de que temos vergonha e a comédia é uma forma óptima de falar sobre essas coisas e de lidar com elas. São tempos diferentes daqueles quando escrevíamos comédia em 1969, em que tudo era um alvo em aberto, mas estranhamente acho que isso era porque no mundo na altura havia mais com que nos preocuparmos, a Guerra Fria, a luta pelos direitos civis, mas por alguma razão em Inglaterra podíamos falar sobre quase tudo através da comédia. Porque ninguém tinha feito isso antes.”
E chega à conclusão: “Olhando para os Python hoje, há provavelmente todo o tipo de coisas que seriam totalmente politicamente incorrectas. O que é estranho é que as pessoas ainda se riem delas, ainda vêem os programas, e não houve nenhuma insurreição civil, nenhuma grande religião encerrou por causa disso.”
Michael Palin considera-se “um sacana extremamente sortudo”, disse logo no pontapé de saída a Ricardo Araújo Pereira. “Escrever é o que mais gosto. É um acto criativo primário”, acredita, “ é algo que estamos sempre a aprender”. O Monty Python está em “Biseo”, como pronuncia atenciosamente, provavelmente sem saber porque arranca alguns risos da plateia — a troca do bê pelo vê e o ligeiro ciciar no esse aproximam-no ao sotaque da região, e a audiência reconhece-se. São fãs dos Monty Python de todas as idades, mas também fãs dos Gato Fedorento, que ocupariam Araújo Pereira com fotografias e autógrafos no final da conversa.
O humorista e colunista português quis saber muito sobre o grupo de que é admirador, sendo que já entrevistara Terry Jones e John Cleese no passado. É das “tensões” entre os vários Python que vêm alguns dos seus feitos, responde-lhe Palin. Elas eram “parte da dinâmica que fazia os Python funcionar”, essa trupe que já de si considera que “era em parte um acidente”. A voragem criativa era tal que era “uma força centrífuga” e a sua conhecida animosidade com John Cleese serviria o grupo no programa da BBC em que se estrearam, Monty Python’s Flying Circus (1969-74). “Eu cumpria a função do homem com quem o John se zangava. O que é muito importante. Ele tentava devolver o papagaio e eu dizia ‘Não, não, está só a descansar’.” Esse sketch é um dos que nomeia quando fala do processo criativo do grupo, um dos tiros certeiros que os pôs logo, numa primeira leitura, a rir “histericamente”. “O [sketch do] Ministry of Silly Walks foi mais trabalhoso.”
Michael Palin assume-se como um observador do comportamento humano. Tanto que é essa a sua leitura dos três filmes Python, que considera que Ricardo Araújo Pereira “levou demasiado a sério”. Por não serem, como enunciara o entrevistador, sobre os grandes temas de Deus, fundação de Inglaterra e sentido da vida, mas sim “sobre o absurdo do comportamento humano” na religião organizada (e esganiça a voz para imitar alguns dos seguidores de A Vida de Brian), “sobre o comportamento britânico”, sempre polido mesmo quando violento ("Oh, temos um Império. Oh céus, oh dear", brinca sobre Monty Python e o Cálice Sagrado, de 1975) ou um filme que, concede, “ainda é bastante radical” — O Sentido da Vida, de 1983.
O encontro entre o Python e o Gato foi o grande chamariz do festival, que alia o vinho da região e a literatura e visa colocar Viseu na rota do turismo cultural. Conta também na programação desta sexta-feira com uma actuação de Benjamin e que ao longo do fim-de-semana terá ainda duetos conversadores com o crítico cultural Pedro Mexia, o escritor e ex-secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas, a historiadora Raquel Varela, o poeta Nuno Júdice ou o escritor Afonso Cruz, bem como entre Frei Bento Domingues e Carlos Fiolhais.
O PÚBLICO está em Viseu a convite do festival Tinto no Branco