As memórias escavadas nos arquivos
“O cinema é das formas mais incríveis de conhecermos a nossa história”, diz a investigadora Maria do Carmo Piçarra. E é por aí que o Porto/Post/Doc aborda o seu tema de 2017: Arquivo e Pós-Memória, o cinema feito a partir dos arquivos que cruza as memórias públicas e as individuais.
Arquivo e Pós-Memória — é este o tema da quarta edição do Porto/Post/Doc, que arranca já esta segunda-feira nas salas do Rivoli e do Passos Manuel. Pretexto para o programa de debates Forum do Real, uma escolha de filmes e, de modo mais lato, um questionamento sobre o que é hoje fazer cinema a partir dos arquivos históricos, articulado com o projecto europeu de investigação Memoirs: Filhos do Império e Pós-Memórias Europeias, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. O cinema feito a partir de arquivos é uma forma que se tem tornado central na prática cinematográfica portuguesa: filmes tão diferentes como A Toca do Lobo de Catarina Mourão (2015), 48 de Susana de Sousa Dias (2009), Linha Vermelha de José Filipe Costa (2011) ou Fantasia Lusitana de João Canijo (2010) propõem uma nova maneira de olhar para a história do nosso país, através da selecção e utilização das imagens de arquivo de um ponto de vista posterior.
É algo que está, por exemplo, bem exposto no principal filme apresentado no programa Arquivo e Pós-Memória, Spell Reel, de Filipa César (2017; Rivoli, 1 Dezembro às 18h30): redescobrir as imagens sobreviventes dos arquivos cinematográficos da Guiné-Bissau e interrogá-las, hoje, sobre o que representaram e ainda representam, ligando-as às pessoas, aos locais, aos tempos históricos e a tudo o que aconteceu nos anos que entretanto decorreram. Esse “escavar” de memórias reprimidas, esquecidas ou perdidas prolonga-se pelos outros títulos do programa — as longas Ejercicios de Memoria, da paraguaia Paz Encina (Rivoli, 2 Dezembro às 21h00) e Cuatreros, da argentina Albertina Carri (Rivoli, 3 Dezembro às 16h30), e as curtas portuguesas Avó (Muidumbe) de Raquel Schaefer (em primeira parte de Spell Reel) e Estilhaços de José Miguel Ribeiro (em primeira parte de Ejercicios de Memoria). Todos eles cruzam a consciência do que existe e do que não existe nos arquivos com a vontade de pensar o cinema, e o arquivo, e inscrevem-se num movimento global de repensar e olhar a história através do potencial aberto pela imagem em movimento.
Não é por acaso que Maria do Carmo Piçarra, crítica e jornalista de cinema transformada em investigadora fascinada pelas histórias esquecidas do cinema do colonialismo português do século XX (autora de Azuis Ultramarinos — Propaganda Colonial e Censura no Cinema do Estado Novo, ed. 70), nos diga que “o cinema é das formas mais incríveis e extraordinárias de nos conhecermos e de conhecermos a nossa história”.
Numa longa conversa por Skype, Maria do Carmo diz que “o trabalho de investigador ilumina porque é que aquelas coisas foram filmadas, e porque é que foram filmadas daquela maneira”: “Muitas vezes, os filmes são resultado de um processo em que o cineasta e uma equipa tentou fazer um filme, mas essa história foi afectada pelas políticas públicas culturais, pelos financiamentos privados, pelo orçamento disponível, e o resultado final não é forçosamente aquele que era inicialmente pretendido. E é isso que os arquivos nos permitem dizer sobre nós próprios e sobre os filmes: o modo como tudo aquilo está em articulação com o mundo que o rodeia.”
Algumas horas depois, Tiago Baptista, actual director do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento mas ele próprio investigador, professor e conservador (autor de A Invenção do Cinema Português, ed. Tinta da China), fala-nos destes novos olhares sobre os arquivos e as memórias como “filmes que nos dizem sempre qualquer coisa sobre a maneira como o cinema produz sentido.” “Tiram partido das ferramentas de montagem e das imagens dos arquivos não apenas para reflectir sobre determinados períodos históricos do nosso passado,” explica, “mas também para reflectir sobre o papel do cinema e as possibilidades discursivas do cinema. São filmes que tentam perceber como é que o cinema foi utilizado para determinado fim num momento histórico, mas que o fazem em contextos criativos completamente novos.”
Acima de tudo, o essencial é que estes filmes devolvam à primeira linha do discurso sobre a cultura e a memória imagens que são essenciais à reconstrução do passado. Maria do Carmo Piçarra fala da necessidade de “fazer renascer os arquivos”: “Se estiverem parados e ninguém mexer naquilo que lá está, são arquivos mortos”, defende. “Para pessoas como eu, a investigação tem de passar forçosamente pelos arquivos, pela rememoração daquilo que lá está, para lidarmos melhor com aquilo que somos no presente. Os arquivos devem ser trazidos ao espaço público, trabalhados e conhecidos transversalmente. E como investigadora, aquilo que me motiva é a partilha: mostrá-los num contexto com uma audiência que os vai debater e encontrar de repente alguém que diz 'estive lá quando isto foi filmado'.”
No texto de apresentação do programa, os investigadores Margarida Calafate Ribeiro e António Sousa Ribeiro falam da “pós-memória” como algo que surge da interacção entre a “memória privada” e a “memória pública”, entre a história pessoal e a História com H grande. Muito do cinema contemporâneo global — ficcional ou não — cruza essa duas vertentes, e Maria do Carmo Piçarra considera que, por exemplo, é impossível olhar para os arquivos coloniais portugueses sem lhe ter uma qualquer ligação pessoal. “Podemos não ter vivido esse período, mas vivemos com ele, em casa, com as marcas e as sequelas. Há um milhão de pessoas que combateram na guerra colonial, e quase todos temos familiares que viveram nas ex-colónias ou têm pais que combateram. É uma história que nos está muito próxima, que não foi discutida no 25 de Abril, porque estávamos ocupados a tentar modernizar o país e a tornarmo-nos europeus e cosmopolitas, e esquecemo-nos de olhar para uma história complicada.”
Daí que o interesse que vê pelo arquivo — partilhado não apenas com realizadores mas também com investigadores como Baptista, Daniel Ribas (um dos programadores do Porto/Post/Doc) e Paulo Cunha seja algo de profundamente geracional. E Portugal não é uma excepção neste trabalho de filmes-ensaio onde as imagens de arquivo são retrabalhadas — ao longo das conversas surgem os filmes de Göran Hugo Olsson, Black Power 1967-1975 (2011) e A Respeito da Violência (2014) ou o mais recente Eu Não Sou o Teu Negro de Raoul Peck (2016). (Mesmo que Maria do Carmo nos diga que, por exemplo, o interesse pelo cinema anti-colonial ou de propaganda colonial seja especificamente português — “não sinto que isso exista em França” por relação às suas próprias colónias.)
Tiago Baptista concorda que há uma vertente geracional — “quem olha para estas imagens não as vê como janelas transparentes para o passado, mas como mediações opacas de uma realidade que não era o que elas queriam fazer passar”, explica. Para o director do ANIM, há uma atitude ao mesmo tempo de questionamento e de curiosidade sobre o que este material é e pode querer dizer: “Eles estão interessados em interrogar, em pôr debaixo do microscópio, o grau de mediação que as imagens tinham: porque são janelas que explicam como é que o cinema foi utilizado para determinado fim naquele momento histórico, quais as estratégias usadas ali. E a distância geracional ajuda. O facto de não terem vivido o período leva a que os filmes sejam tão reflexivos: o seu objecto não é o passado, mas a mediação do passado feita pelo cinema.” No fundo, trata-se de “ver o que as imagens captaram independentemente da intenção de quem as filmou, e utilizá-las em contextos que nos dizem como é que funcionava o cinema. Ou como é que funciona o cinema, porque a técnica cinematográfica é independente de ideologias.”
Maria do Carmo Piçarra e Tiago Baptista são dois dos convidados do painel de debates do Forum do Real, que decorre a partir das 10h00 de 30 de Dezembro na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. O programa completo do Porto/Post/Doc está em www.portopostdoc.com