Jorge Colombo desenhou com um Apple Pencil a caixa de lápis Viarco que a avó lhe ofereceu quando era criança. Foi um dos mais de 40 produtos que o ilustrador português, há décadas sediado em Nova Iorque, reproduziu para marcar o décimo aniversário da loja A Vida Portuguesa.
Hoje espalhada por cinco espaços físicos (quatro em Lisboa e um no Porto) e uma loja online, a empresa criada em 2007 por Catarina Portas recolhe histórias de marcas portuguesas como a dos chocolate Regina e dos cadernos Emílio Braga para as recontar de uma forma moderna. São produtos como estes, mais a pasta dentífrica Couto ou os rebuçados Dr. Bayard que Colombo desenhou no seu iPad Pro.
“Há qualquer coisa de ritual em documentar um objecto e fazer uma pintura. É mais especial do que simplesmente tirar uma fotografia”, conta ao Culto, a partir de Nova Iorque — onde está desde 1989 e passou metade da sua vida, já tendo trabalhado para publicações como a revista The New Yorker. “Leva-se mais tempo a trabalhar com cada linha, cada pormenor. É uma questão de carinho”, remata.
Não é a primeira vez que Colombo colabora com A Vida Portuguesa. Ainda se lembra do ano em que conheceu Catarina Portas, em 1982. Durante a infância cruzavam-se em Azeitão, onde tinham amigos em comum. “Ele estava sempre ali num canto a desenhar... as pessoas, as casas, os campos...”, lembra a empresária. “Adoro ver o Jorge a desenhar. Sempre adorei.”
O projecto surgiu numa altura em que o ilustrador veio passar uma temporada a Portugal. Na verdade, confessa Catarina Portas, “nós somos amigos e andamos sempre à procura de coisas para fazermos juntos. Entendemo-nos bem”. Apesar de viver nos Estados Unidos há quase três décadas, o ilustrador tem acompanhado a evolução da loja — e, consequentemente, dos produtos portugueses que esta representa. Não conhecia o chá da Gorreana, mas lembra-se de desenhar com os lápis Viarco, ao lado da avó, ainda nos anos 1960. E a tarefa mais difícil, brinca, “foi resistir aos biscoitos Paupério”.
Colombo “tem um olhar de um expatriado, mas um com uma memória das coisas portuguesas que a mim me interessa”, descreve Catarina Portas. “Sempre me interessou muito o olhar dele sobre as coisas portuguesas. Também me influenciou ao longo da vida.” No iPad onde faz os seus desenhos, tem um wallpaper de uma folha de papel nuvem da Emílio Braga, conta Catarina. “Mistura muito esta coisa dos objectos do passado nos suportes de futuro”.
A escolha dos produtos foi um trabalho de equipa. “Fomos à loja e escolhemos os objectos. Escolhi alguns que achava particularmente atraentes”, conta o ilustrador. Mas havia também produtos incontornáveis. “Era inevitável desenhar uma andorinha Bordalo Pinheiro, que é um exclusivo nosso e uma peça que estava esquecida”, explica Catarina Portas. “Hoje em dia vendemos mais de dez mil por ano.” A peça mais vendida em número de unidades são as pastilhas Gorila, mas essas não foram desenhadas. Já o segundo produto que mais passa pela caixa, as sombrinhas de chocolate Regina, sim; bem como o creme de mãos Benamôr; o licor Beirão e lata de sardinhas Tricana.
Os desenhos serão agora editados num pequeno caderno de apresentação da loja (aproximadamente a A6), com um texto a explicar a história de cada produto — algo que existe desde o início, sendo esta a quinta ou sexta reedição. As ilustrações foram também adaptadas num poster de dois tamanhos (10 euros A2; 15 euros A1) e numa selecção de 12 postais (50 cêntimos cada). O livro deverá estar disponível ainda antes do Natal (em duas versões, português e inglês) e os postais e posters já estão à venda nas lojas. Para Catarina Portas, o projecto é também uma forma de “acrescentar" alguma coisa "à iconografia dos produtos portugueses”.
Dez anos de vida (portuguesa)
É com alegria e alguma satisfação que a empresária e ex-jornalista vê comprovada uma afirmação que fazia há dez anos: “Há que perceber que o nosso atraso pode ser o nosso avanço.” Catarina Portas refere-se assim ao património de fábricas, manufacturas e ao conhecimento, que “a Europa perdeu nas últimas décadas largamente”, e que se manteve vivo em Portugal, em grande parte fruto de alguma inércia das empresas, depois de décadas a trabalhar num mercado proteccionista. Com a entrada de Portugal na União Europeia, aquelas tiveram dificuldade em competir com as marcas estrangeiras.
“Na realidade, o facto de termos tido essa economia muito proteccionista, por péssimas razões, também fez com que muitas fábricas, fabriquetas e manufacturas tivessem durado. E isso para o mercado de hoje é uma qualidade fantástica.”
O percurso de marcas como a Ach. Brito, que em 2016 abriu uma loja Claus Porto em Lisboa e este ano uma loja-museu no Porto; e da Bênamor, que recentemente inaugurou uma loja no renovado Campo das Cebolas, em Lisboa, ilustram esta mudança de paradigma. São ambas marcas com produtos de qualidade e uma história rica, que até há poucos anos ocupavam umas prateleiras aqui e ali, de lojas tradicionais e um lugar menor na nossa memória colectiva, lembra. Hoje afirmam-se como comércio moderno.
A forma de vender produtos mudou muito e é inegável o papel que A Vida Portuguesa desempenhou. Foi talvez a grande embaixadora desta forma de apresentar os produtos portugueses, envolvendo as pessoas nas suas histórias. Fez com que as pessoas olhassem para eles de outra forma. Catarina Portas — acérrima defensora da preservação dos espaços antigos de comércio — esteve também envolvida em projectos como programa “Lojas com História”.
O programa de televisão Fabrico Nacional, sobre fábricas antigas portuguesas, “é um bocadinho o culminar de todo este trabalho de investigação que fomos fazendo ao longo destes anos”, conta. O conteúdo será editado em livro, no próximo ano.
A Vida Portuguesa tem actualmente cerca de 300 fornecedores e este ano esperam facturar quatro milhões de euros. Quando Catarina Portas começou o projecto tinha uma ambição: “Queria provar que era possível fazer uma loja de sucesso na cidade, num espaço antigo, sem o ter que partir todo.”
A empresária promete novidades para breve, mas diz que quer fazer “coisas fora de Lisboa” e que, em relação ao futuro, o objectivo “não é continuar a abrir montes de lojas todas iguais”. O que reservam então os próximos dez anos? “A mim interessa-me fazer coisas novas e que tenham reflexos interessantes em termos de comunidade”, responde Catarina Portas.
Notícia corrigida às 21h20 de 28 de Novembro: nome do programa televisivo de Catarina Portas