O estranho caso da eleição de Donald Trump
Um ano após as eleições, as principais causas que terão levado à vitória continuam a ser tema de acesos debates.
Há dias, o Washington Post fazia eco de um estudo em que, recorrendo ao cruzamento da informação da localização de dez milhões de telemóveis com o sentido de voto maioritário em determinadas áreas residenciais, se concluía que clivagens políticas fizeram diminuir o tempo de reunião de famílias americanas no Dia de Acção de Graças em 2016. A notícia poderia não passar da secção de curiosidades, não fosse a celebração ter ocorrido poucas semanas após uma das eleições mais controversas e divisivas da extensa história democrática dos Estados Unidos. Um ano após as eleições, as principais causas que terão levado à vitória de Trump continuam a ser tema de acesos debates, como podemos assistir nos inúmeros balanços a propósito do aniversário da eleição presidencial. Mas, afinal, quais são os principais factores explicativos do triunfo eleitoral de Donald Trump?
A surpresa causada na generalidade dos quadrantes pelo desfecho das eleições americanas foi tal que, embora as tentativas de explicação se sucedam, estamos ainda longe de uma resposta consolidada e definitiva que agregue a opinião da maioria dos observadores. Se mesmo entre os analistas mais qualificados a opinião informada nunca é asséptica de pré conceitos e juízos políticos, na presença de um actor político com o perfil do Presidente americano o vírus opinativo encontra fundadas condições para florescer. No espaço público há análises para todos os gostos, umas com mais, outras com menos respaldo teórico na sociologia eleitoral. É natural que o debate possa perdurar por décadas, mas para já podemos fazer um resumo de algumas explicações que têm sido formuladas no domínio da ciência política e do estudo dos comportamentos eleitorais.
A vitória do populismo. Talvez a tese mais disseminada para os resultados das eleições americanas seja a da vitória do “populismo”. O termo não é novo, mas nos últimos anos ganhou proeminência quer na comunicação social, quer nas análises académicas. A questão da insurgência do populismo em algumas das mais sofisticada democracias contemporâneas não se limitou às eleições americanas e não discriminou geografias, sistemas de governo ou quadrantes políticos. Da vitória do Leave no referendo do “Brexit” à chegada ao governo do Syriza, passando pelas eleições na Holanda e em França, só para referir os exemplos mais salientes, a questão do populismo esteve sempre presente. Mas como podemos distinguir o “populismo”?
Um dos académicos que mais têm contribuído para este debate é Cas Mudde. A caracterização de Cas Mudde pode ser cotejada, por exemplo, no livro com C. R. Kaltwasser editado este ano em Portugal pela Gradiva e a FFMS precisamente com o título Populismo, Uma Brevíssima Introdução. Para estes autores, o populismo é uma degeneração da democracia (na qual existe sempre em algum grau), que utiliza muitas vezes uma ideologia hospedeira (pode ser de esquerda ou de direita) como veículo político, mas que se caracteriza sobretudo pela exploração da antinomia entre “nós” e “eles”, o “povo puro” e a “elite corrupta”. No caso das eleições americanas de 2016, Donald Trump encarnou o justiceiro redentor do povo americano enganado por uma elite política e económica sediada em Washington D.C. e nos meios cosmopolitas, personificada por Hillary Clinton. A fotografia eleitoral de uma América pintada a azul praticamente apenas nos estados da costa oeste e do Norte da costa leste e com uma enorme mancha vermelha no restante território é uma impressiva ilustração realista desta abordagem. Numa edição do Journal of Democracy dedicada às eleições, William Galston discorre sobre os perigos deste momento populista e fala de uma resposta que foi dada pelos eleitores dos territórios que são sobrevoados (flyover country), costa a costa e altaneiramente, por uma elite cosmopolita.
Polarização e partidarismo.Um outro ponto de partida para explicar não apenas o resultado final, mas também todo o processo eleitoral é a perspectiva de que este é o produto do crescente partidarismo e polarização na política e na sociedade americanas. Cientistas políticos como Larry Diamond ou Ian Shapiro têm sublinhado que a polarização é mais exacerbada no sistema político do que na própria sociedade, procurando identificar as causas e propondo alguns remédios democráticos. Shapiro aponta o sistema de selecção através de eleições primárias como um mecanismo potenciador de uma dinâmica que cria incentivos para que candidatos que se afastam do centro e que sejam apoiados por tendências mais “activistas” de cada partido possam sair vencedores — o que no seu entender está a afastar as posições dos candidatos dos partidos das posições do eleitor mediano. Para Diamond, que também comunga desta abordagem, uma das causas da polarização reside no sistema eleitoral de maioria relativa e por isso vê a adopção de um sistema de voto alternativo, em que os eleitores pudessem ordenar as suas preferências e em que um candidato necessitasse de 50% para ser eleito, como um instrumento de moderação.
Globalização e voto económico. A vitória de Donald Trump mundializou a expressão “rust belt” utilizada para caracterizar os estados norte-americanos em que a produção industrial do século XX e os seus trabalhadores mais foram afectados pelos efeitos da globalização. Deslocalização de fábricas ou regulamentação por causa das emissões de CO2 não são termos acarinhados em muitas cidades da região do Midwest e dos Grandes Lagos. O clássico trabalhador industrial branco foi erigido como eleitor tipo e símbolo da vitória de Trump. Esta abordagem encaixa na já extensa literatura que analisa os “perdedores” e os “vencedores” da globalização, bem como a sua relação com o populismo. Embora se possa encontrar aqui uma explicação para a vitória de um candidato que prometeu um milagre de recuperação económica para esta América, alguns observadores notam que a maioria dos grupos sociais economicamente mais débeis continuou a votar no Partido Democrata e que em termos médios os eleitores de Trump não são os mais desfavorecidos. Também Chistopher Achen e Larry Bartles chamam a atenção para o facto de o rendimento real nos Estados Unidos ter crescido 2,2% nos dois trimestres que antecederam a eleição e de que a “vitória” de Hillary Clinton no voto popular (48,2% vs. 46,1%) ficou em linha com o que seria esperado através da análise estatística realizada por estes autores da relação entre o desempenho económico próximo das eleições e a votação no partido incumbente.
Diz-me quem és... Uma abordagem que tem emergido como uma das explicações mais robustas para a vitória do candidato do Partido Republicano é a de que as referências identitárias continuam a ser o indicador mais fiável do sentido de voto — “Diz-me quem és, dir-te-ei em quem votas.” A explicação não é propriamente nova e há muito que a sociologia eleitoral justifica o comportamento político tendo por base clivagens sociais, religiosas ou culturais. A novidade é que em 2016 esta explicação recuperou fôlego, sobressaindo no universo daqueles que estudam os comportamentos eleitorais, e não só, o livro de Chistopher Achen e Larry Bartles Democracy for Realists. Para além da defesa da identidade e de uma lealdade partidária que lhe está associada como principal factor explicativo das decisões dos eleitores, os autores fazem uma forte crítica à capacidade do processo democrático para gerar boas decisões e contestam grande parte dos fundamentos da teoria económica do eleitor racional. Também ignoram muito do que tem sido escrito nas últimas décadas sobre desalinhamento partidário e volatilidade eleitoral. A vitória de Donald Trump dilatou a esfera de discussão desta análise, suscitando quer vibrantes concordâncias, quer acesas críticas.
É certo que muitas destas explicações se cruzam e que nas análises mais ponderadas que procuram explicar o comportamento eleitoral nas presidenciais americanas de 2016, em certo grau, todas estão presentes. Mas, a menos que no Dia da Acção de Graças de 2017 a informação fornecida através da localização de telemóveis nos permita conclusões mais peremptórias, este é um debate que irá continuar.