Como as paisagens de Bernardo Conde se deixaram encher por pessoas
O pastor Adelino disse-lhe “Venha-me ver mais vezes”. E ele nunca mais parou de procurar as pessoas que preenchem as paisagens. Agora quer tirar toda a gente do sofá, a procurar coisas novas, a descobrir e mudar o mundo. É o director do National Geographic Exodus Aveiro Fest, que arranca na próxima sexta.
Bernardo Conde já era fotógrafo, já era naturalista, já tinha passado vários anos a imortalizar paisagens avassaladoras no ecrã da sua máquina fotográfica. Mas ainda era dos que esperavam o tempo que fosse preciso para, nas cidades, conseguir captar a praça principal sem os ajuntamentos de pessoas, sem a multidão de turistas. Estávamos, então, no ano de 2010 e ele era, também, então em modo free lancer, um profissional da cartografia que andava junto às fraldas do Alvão e na Estrada Nacional 15, algures entre Amarante e Vila Real, a completar um trabalho de informação geográfica daquela zona. Se não foi tudo o que mudou nessa tarde, em que teve de se desviar de um rebanho que atravessava a estrada, Bernardo Conde tem a certeza de dizer que mudou quase tudo.
“Foi quando eu vi aquela cara, sorridente, a entrar-me pela janela adentro para me dizer: Obrigado por se desviar e não me ter apanhado nenhuma ovelha”, conta. Foi num dia 20 de Junho.
Bernardo Conde relata o episódio que lhe mudou a vida com precisão milimétrica. Tinha a máquina fotográfica no banco de trás do carro, e pensou logo: este pastor dava um belo retrato. Mas o impulso foi seguir em frente. Afinal, ele não fotografava pessoas, só paisagens. Demorou 300 metros até cair na real, e fazer marcha-atrás. Parou o carro e perguntou ao pastor se o podia fotografar. “Chamava-se Adelino. Ficou espantado com o meu pedido, disse-me que não estava bem apessoado, apresentável. Respondi-lhe que era a roupa do seu trabalho e que era muito digna até por isso”, contou.
Tirou-lhe muitas fotografias. De frente, de perfil. Com as ovelhas, sem elas. “O senhor Adelino estava espantado. Dizia-me ‘O senhor é tão bom para mim’. Quando me vinha embora pediu-me : ‘Venha-me ver mais vezes’. E eu assim fiz, até ele morrer”, conta Bernardo Conde.
Ia visitá-lo amiúde, levava-lhe a consoada pelo Natal, nunca mais o esqueceu. A frase “Venha-me ver mais vezes” ficou sempre a ecoar na cabeça de Bernardo, era a ela que voltava sempre, e todos os dias, nos muitos dias que levou a fazer o caminho francês de Santiago. “Foi nesse mesmo ano, em 2014. Achava que ia fazer a viagem na minha, sozinho. Mas nunca mais. Percebi que com cinco minutos de fotografia tinha quebrado a solidão de um eremita, porque era isso que era o pastor Adelino. Valeu-me compreender o quão importante é darmo-nos a outras pessoas. E em contexto de viagem é ainda mais importante estarmos abertos e receptivos”, explica.
Durante os mais quatro ou cinco anos que o pastor Adelino viveu, este tornou-se no avô que Bernardo já tinha perdido. De um modo diferente foram dois os “avôs” que ajudaram Bernardo a definir a pessoas que é hoje: um, o pastor Adelino, porque lhe deu o abanão emocional que lhe permitiu humanizar as paisagens; o outro, o biológico, porque tinha nas estantes os livros que ajudaram Bernardo Conde a descobrir o que queria ser quando fosse grande: o livro Ao encontro da natureza e os fascículos sobre os continentes terrestres editados pela Asa.
A infância passada na praia da Barra, em Ílhavo (“Não era natureza de excelência, mas entre pinhal e acácias havia muito mato para desbravar”, conta), e os livros descobertos na prateleira do avô ajudaram-no a perceber o gosto pela natureza e pela diversidade. Ter ido parar ao curso de Engenharia do Ambiente à Universidade de Trás os Montes e Alto Douro não foi um acaso. Ser quem é hoje, “um apaixonado pelas viagens e pela fotografia”, já é uma súmula de acasos. Bernardo Conde não sabe bem quando é que se afastou definitivamente do futuro que tinha imaginado para si, e com o qual estava confortável: ser quadro do Instituto de Conservação da Natureza (ICN) ou da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro. Trabalhou em ambos, gostava do que fazia. Os acasos foram-no desviando desses percursos, e agora, para além de apaixonado pela fotografia e pela paisagem, é, sobretudo, “um fazedor” que insiste em desafiar as pessoas a sair do sofá e a viver experiências. “Pode não ter nada a ver com viagens nem com fotografia, pode ser levantar-se para fazer um bolo, se nunca tiver feito nenhum”, explica.
Bernardo Conde veste muitas peles — e a todas se entrega com empenho. Engenheiro do ambiente, fotógrafo, líder de viagens (acompanha grupos da agência de viagens da Nomad para Madagáscar e para a Mongólia), fundador do Trilhos da Terra (uma associação cultural que começou com 30 metros quadrados na cave de casa e hoje ocupa 200 metros quadrados numa zona nobre da cidade da Aveiro). A última pele que veste é a de director do National Geographic Exodus Aveiro Fest - Festival Internacional de Fotografia e Vídeo de Viagem e Aventura, que arranca no próximo dia 1 de Dezembro, no Centro de Congressos de Aveiro. “Este é o festival que inspira as pessoas a ir, a sonhar e a ser livres. Livres de dúvidas, de medos, de preconceitos, livres de barreiras étnicas e culturais”, lê-se na descrição do festival. São palavras que ajudam a perceber que é Bernardo Conde quem está por detrás da iniciativa, em conjunto com mais dois amigos fotógrafos, Gonçalo Figueiredo e Pedro Cerqueira. “Temos dez fotógrafos e videografos convidados, um painel que procuramos que seja diversificado e representativo dos muitos estilos de fotografia e de vídeo de viagem. mas o mais importante é perceber que estas pessoas que vão falar no Exodus são tal como qualquer um de nós. Têm dois braços, duas pernas, neurónios e sobretudo auto-motivação e vontade de ser proactivos. Não é por acaso que metade do painel move-se por causas”, diz Bernardo Conde.
Entre os nomes do painel estão Mário Cruz, fotojornalista da Lusa que publicou o premiado trabalho sobre os talibes, ou Pete McBride, fotógrafo e videografo que tem feito trabalho notório sobre a conservação dos rios, desde o Colorado até ao Ganges, ou GMB Akesh, fotógrafo do Bangladesh que se tem empenhado na denúncia de trabalho infantil e outras causas sociais. O próprio Exodus também já escolheu a sua causa: “Não podia ser outra, em ano de terríveis incêndios. Todo o lucro que possa trazer a organização deste festival será usado para contribuir para iniciativas de reflorestação.”