A primeira tentativa (falhada) de criar uma defesa comum
A história política da Europa e do seu processo de integração do fim da II Guerra até aos nossos dias é o tema de A Balança da Europa, do académico, membro do IPRI (Instituto Português das Relações Internacionais) e colaborador do PÚBLICO Carlos Gaspar, editada pela Aletheia.
Acaba de chegar às livrarias o novo livro de Carlos Gaspar, académico e membro do IPRI (Instituto Português das Relações Internacionais). A oportunidade é óbvia numa altura em que há cada vez mais a consciência de que a integração europeia deixou de ser uma certeza e que o seu futuro depende da forma como encarar os grandes desafios que tem pela frente. Incluindo a nova iniciativa para uma defesa europeia autónoma e credível que está hoje em cima da mesa dos líderes. O trecho que apresentamos é justamente sobre a primeira tentativa, gorada, de criar uma defesa comum europeia em 1952.
"(…) A partida ainda não chegou ao fim. No dia 25 de Junho, a Coreia do Norte passa a linha do Paralelo 38 – estabelecida para separar a zona de ocupação soviética da zona americana na península coreana – e invade a Coreia do Sul. A ofensiva força um pivot asiático dos Estados Unidos, que precisam de mobilizar os seus recursos para comandar a intervenção das forças militares das Nações Unidas, que impedem a reunificação comunista da península. A comparação entre a divisão das duas Alemanhas e a divisão das duas Coreias é incontornável – a linha do Elba é o Paralelo 38 na Europa– e a pressão para o rearmamento da Alemanha torna-se irresistível.
Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha querem a República Federal na NATO, que precisa das forças militares alemãs para completar o seu dispositivo na Europa continental. A França não quer a Alemanha na NATO e nenhum governo francês pode sobreviver à reconstituição das Forças Armadas alemãs.
O Ministro da Defesa, René Pleven, propõe a formação de um Exército europeu onde unidades alemãs podem existir integradas em unidades multinacionais. [O ministro britânico] Bevin considera o Exército europeu um “cancro no corpo atlântico”, mas [o secretário de Estado americano] Acheson, que tenta ganhar tempo com a promessa de reforçar as forças americanas e de nomear um Comandante Supremo Aliado da NATO na Europa – o General Eisenhower vai ser o primeiro SACEUR – acaba por ceder.
Monnet é chamado para dar forma ao Plano Pleven e reproduzir o modelo da CECA [Comunidade Europeia do Carvão e do Aço] numa Comunidade Europeia de Defesa (CED). O Exército europeu integra as Forças Armadas dos Seis, sob a tutela política de um Ministro da Defesa europeu e subordinado ao comando operacional do SACEUR. A CED é um passo crítico para a formação de uma federação europeia – uma União Política Europeia, com um governo e uma assembleia representativa. Adenauer tem de enfrentar a oposição do SPD e dos pacifistas e exige como contrapartida do rearmamento, o fim do regime de ocupação e a resolução da questão do Sarre. Schuman está cercado pela oposição do PCF e dos gaullistas à CED e a França precisa do empenho directo dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha: sem uma garantia anglo-americana, a Alemanha pode dominar a CED para depois se autonomizar: “não há uma solução puramente continental para a questão alemã”.
Em Maio de 1952, os Seis assinam em Paris o tratado que cria a CED, sem garantias adicionais dos anglo-americanos, e a ratificação francesa fica em suspenso, mesmo depois dos outros cinco completarem esse processo. Churchill, de novo Primeiro-Ministro, não é hostil ao projecto francês, mas não quer participar. Eisenhower, eleito Presidente dos Estados Unidos, e o seu Secretário de Estado, John Foster Dulles, tomam ambos partido pela CED e tornam-se os seus principais defensores. Para o general, o Exército europeu é a única forma de mobilizar as capacidades colectivas dos europeus, que podem contrabalançar a União Soviética e tornar possível a retirada norte-americana.Para Dulles, a CED é a única forma de resolver o problema da supremacia alemã na balança europeia.
Não obstante, as divisões internas na França, que está a travar uma guerra que não pode ganhar na Indochina, impedem a ratificação do tratado, reclamada com uma insistência dramática por Dulles, que ameaça, na cimeira do Conselho do Atlântico Norte, em Dezembro de 1953, rever – “agonizing reapparaisal” – os compromissos europeus dos Estados Unidos, que estão preparados para regressar à defesa do hemisfério ocidental e ao Extremo-Oriente.
O novo chefe do Governo, Pierre Mendes-France, decide desistir da CED para tentar recuperar a estabilidade política da IV República. O pânico provocado pela invasão comunista da Coreia pertence ao passado, Estaline morreu, é preciso negociar o fim da Guerra da Indochina e não existe nenhuma razão imperativa para a França ser obrigada a integrar as suas Forças Armadas num Exército europeu, que divide irremediavelmente os partidos políticos franceses. Mendes-France decide iniciar a produção de uma arma atómica francesa, seguindo o exemplo da Grã-Bretanha, que se torna uma potência nuclear em 1952: essa é a melhor maneira de consolidar a França como uma grande potência e conjurar uma ameaça alemã.
Em Agosto de 1954, a Assembleia Nacional francesa decide não ratificar a CED e põe em causa a continuidade da NATO e do processo de integração comunitário. Face à hostilidade patente de Dulles e de Adenauer, Mendes-France reúne-se com Churchill e Eden, que está de regresso ao Foreign Office, para confirmar que a França não pode deixar de aceitar como alternativa à CED a entrada da República Federal na NATO. Eden encontra uma fórmula para resolver o impasse e propõe a revisão do Tratado de Bruxelas [que funda a União da Europa Ocidental] para inscrever as limitações impostas ao rearmamento alemão, incluindo a proibição de ter armas nucleares, no quadro da CED e integrar a República Federal (e a Itália) numa União da Europa Ocidental (UEO).
Os Cinco passam a ser Sete e a UEO passa a incluir os Seis, que devem ser todos membros da NATO, o quadro em que as garantias de defesa do Tratado de Bruxelas podem ser asseguradas. Os acordos de Paris, concluídos em Outubro, redefinem os arranjos definitivos dos aliados sobre a Alemanha: as potências ocidentais mantêm o seu direito de intervenção na Alemanha, se estiver em causa o regime democrático; a República Federal renuncia ao uso da força para obter a reunificação ou mudar as fronteiras; as três potências reservam-se o direito de vetar os acordos celebrados pela Alemanha, nomeadamente qualquer arranjo que possa implicar a sua neutralização; as três potências preservam o seu direito de estacionar forças militares na Alemanha e a República Federal não tem autoridade para forçar a sua retirada; o tamanho, a natureza e os armamentos das forças militares alemãs são submetidos aos limites impostos pelo Tratado de Bruxelas revisto; a República Federal compromete-se a não construir armas nucleares no seu território; o novo Exército alemão está integrado na NATO, onde os poderes do SACEUR são reforçados para impedir qualquer tipo de operação militar alemã independente.
Paralelamente, os acordos de Petersberg, concluídos no quadro da negociação da CED, são revalidados: o regime de ocupação termina quando a República Federal entrar na NATO e a questão do Sarre é remetida para um referendo, depois do qual o antigo protectorado pode pedir a sua integração na Alemanha Ocidental. Em Maio de 1955, a República Federal torna-se membro da NATO e, num reflexo mimético, a União Soviética cria o Pacto de Varsóvia, onde se integram a República Democrática alemã (RDA) e os países europeus do bloco comunista, com excepção da Jugoslávia. Mendes-France destrói a CED e salva a NATO, Eden reinventa a UEO para substituir a CED e integrar a República Federal na Aliança Atlântica, de modo a assegurar uma congruência fundamental entre as Comunidades Europeias e a NATO. Todos os membros da CECA e da UEO pertencem à Aliança Atlântica, a França comanda o processo de integração económica nas Comunidades Europeias e a Grã-Bretanha garante a consolidação da NATO como a instituição responsável pela defesa europeia.
As duas principais potências europeias asseguram a aliança permanente com os Estados Unidos numa comunidade de segurança transatlântica assente na divisão da Alemanha e na integração dos pequenos Estados nos dois pilares da ordem multilateral ocidental, a NATO e as Comunidades Europeias. Nesse quadro é possível restaurar a balança europeia como uma balança parcial no quadro do equilíbrio bipolar, que se consolida com a divisão da Europa."