Mugabe rende-se? Ou optará ele por destruir a legitimidade de todo o sistema?
Mugabe está detido, mas tem o poder de matar a legitimidade de todo o sistema. Irá usá-lo?
No Zimbabwe, “aconteceu o impensável”, escreveu a jornalista zimbabweana Tendai Marima, na noite de terça-feira: “Após um dia de fake news e de desvairadas versões da realidade, os tanques tomaram posições em torno da capital e o presidente Robert Gabriel Mugabe e a sua mulher, Grace, estão agora sob prisão domiciliária. Foram encurralados pelo general Constantino Chiwenga, chefe das Forças Armadas e o homem mais temido no Zimbabwe a seguir ao presidente Mugabe. Parece surreal.”
Está em causa aquele que é o mais antigo ditador do mundo, que faz gala em se declarar “diplomado em violência” ou afirmar: “O Zimbabwe sou eu.” Apesar de detido, Mugabe não disse, pelo menos até ontem, a última palavra.
“É uma guerra de família” na União Nacional Africana do Zimbabwe-Frente Nacional (ZANU-PF), o partido que domina o Zimbabwe desde a independência em 1980, declara Sithembile Mbete, da Universidade de Pretória. “Não é uma revolução. É uma disputa do poder dentro da elite, do mesmo movimento e da mesma história.” O golpe resulta de uma conspiração de “fiéis”. A intriga resume-se a uma “guerra de sucessão” e não visa uma “mudança de regime”, mas a sua conservação. Porém, estas conjunturas podem ser propícias a desenvolvimentos inesperados. A tentativa de salvar um regime através de um golpe conduz por vezes à sua perdição.
Mugabe, de 93 anos, é convidado a abandonar a cena pelos homens que o apoiaram em 37 anos de ditadura e fizeram o inerente “trabalho sujo”. A chave de leitura é simples. A ZANU assume-se como a única força legítima para governar o país, em nome da “luta de libertação nacional”. Partido e Exército estão indissoluvelmente ligados numa “elite predadora”.
O direito divino da ZANU
A reivindicação de monopólio do poder remonta à “Declaração de Mgagao”, feita em 1975 num campo de treino da guerrilha, em que se afirma o direito da ZANU ao poder total após a independência. É nessa base que Mugabe assumirá a chefia do partido em 1977, contra o líder de então, o reverendo Ndabanninji Sithole.
No ano passado, quando a luta pela sucessão já fervia, Chiwenga, avisou que os militares apenas reconheceriam um governo dirigido por um veterano da “guerra de libertação”.
A ZANU foi fundada numa base étnica, a maioria shona, e contra o outro movimento de libertação, a União do Povo Africano do Zimbabwe (ZAPU), de Joshua Nkomo, com base na etnia nbedele. A primeira tarefa da ZANU depois da independência e da eleição de Mugabe em 1980 foi aniquilar a ZAPU, o que envolveu grandes massacres entre a população civil nbedele. Seguiram-se os desafios eleitorais. Os mais efectivos foram os do sindicalista Morgan Tsvangirai, popular nos meios urbanos, para lá das etnias. Militares e polícias impediram sempre a sua vitória, pela intimidação dos eleitores.
Tal como Mugabe, Chiwenga diz lutar para proteger o chamado “accionista maioritário” da luta de libertação. Isto traduz-se em poucas palavras: os veteranos da guerra de libertação, já velhos, mas ainda no comando das Forças Armadas, querem manter o monopólio, ameaçado por uma força concorrente, a facção dita “geração 40” (“G-40”), quadros mais jovens ligados à primeira-dama, Grace Mugabe, a quem chamam “Lady dis-Grace”. Grace preparava o terreno para suceder ao marido.
A intriga palaciana
Na semana passada, Grace e a “G-40” convenceram Mugabe a destituir o vice-presidente, Emmerson Mnangagwa, o alegado “sucessor natural”. Ele é o líder do grupo a que pertencem os generais e “antigos combatentes” — a “facção Lacoste”. Mnangagwa tem como alcunha “O Crocodilo”, porque “não fazia prisioneiros”. Supervisionou massacres e garantiu as vitórias eleitorais de Mugabe. Ocupou todo o tipo de cargos políticos e militares, incluindo os serviços secretos.
O “Crocodilo” refugiou-se na África do Sul e acaba de regressar ao Zimbabwe. Terá muitas simpatias internacionais, a começar em Pretória, e parece estar preparado para mudar a sua imagem e assumir-se como “reformista”. Dada a catastrófica situação económica do Zimbabwe, é uma manobra oportuna. E, como bom discípulo de Mugabe, não lhe será difícil fazer aberturas à oposição. Em 2009, Mugabe nomeou Tsvangirai primeiro-ministro. E foi este, de mãos atadas, quem perdeu credibilidade política. Para os países vizinhos, designadamente a África do Sul, a prioridade é a estabilidade do Zimbabwe, um país ameaçado pela agitação social e mergulhado no caos económico. Por isso poderão apostar em Mnangagwa.
As complicações
Se Mugabe está nas mãos dos militares, Chiwenga e Mnangagwa têm um problema com o “pai fundador”. Não o querem destituir, precisam que ele aceite resignar. Se Mugabe resistir — está muito velho, mas é mitómano —, temem afastá-lo pela força, porque isso envolve um risco: pôr em causa a própria legitimidade histórica de que se reivindicam.
Observa a sul-africana Stephanie Wolters, do Instituto de Estudos Estratégicos de Pretória: “Mugabe compreendeu que usufrui de um poder, o de matar a legitimidade de todo o sistema. E vai certamente usá-lo.” Que fará nesse caso a “facção Lacoste”?
Num cenário ideal, os militares poderiam também destituir Mugabe através do Parlamento. A oposição estaria disposta a cooperar: são necessários dois terços dos votos. Mas é um processo longo e que ameaçaria retirar à ZANU o privilégio histórico de designar o candidato às eleições presidenciais.
A oposição política está fragmentada e não vem daí a ameaça. A população está desmobilizada desde as eleições falseadas de 2008 e 2013. Sofre uma crise económica sem fim. Mugabe começou por arruinar a agricultura, com a ocupação selvagem de “fazendas dos brancos”. Um quatro da população depende da ajuda alimentar internacional. A taxa de desemprego é de 90%. Salva-se a “economia paralela”. Neste momento não há moeda nacional. Os bancos quase não têm dinheiro vivo. As pessoas fazem filas durante a noite para ver se conseguem levantar alguns fundos de manhã. A hiperinflação desfez as pensões e poupanças. Em 2008 a taxa de inflação foi de 231.000.000% (não é gralha, é o número real). A única saída é a emigração.
O deprimente clima social não é propício a revoluções, mas pode fomentar motins. Estão convocadas para hoje manifestações de apoio aos militares. Quando extravasará a luta para fora da ZANU?
Enfim, o país “está suspenso”: que dirá hoje Robert Gabriel Mugabe?