De três artigos sobre cancro em 1976 passámos para quase 700 por ano

Equipa analisou uma base de dados com mais de 5500 artigos científicos publicados entre 1976 até meados de 2015 por investigadores em Portugal que se dedicam à área da oncologia. O “salto”, constatam, começou na década de 90.

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Cientistas estudam mais os cancros de estômago, intestino, tiróide, útero, pulmões, próstata e leucemia NFactos/Fernando Veludo

Às vezes é preciso investigar o que se anda a investigar. O projecto da Associação Portuguesa de Investigação em Cancro (Aspic) centrou-se na investigação oncológica nas últimas décadas, entre 1976 até meados de 2015, em Portugal e apresenta um retrato sobre o quê, quem, como e onde se investiga o cancro. O trabalho confirma a aposta nesta área de investigação, sobretudo a partir da década de 90, revela que os cientistas preferem estudar cancros sólidos e mostra-nos um sólido “casamento” entre a clínica e o laboratório. As conclusões da equipa multidisciplinar sobre a actividade científica num passado recente podem ser ferramentas úteis para decidir por onde ir no futuro.

A partir de uma base de dados com 5725 publicações, os investigadores perceberam, por exemplo, que os cientistas do país “preferem” estudar cancros sólidos (estômago, intestinos, tiróide, útero, pulmões e próstata) e também a leucemia. A opção não surge por acaso e será precisamente o efeito de uma outra característica identificada neste estudo. Segundo os cientistas, a investigação oncológica em Portugal tem uma ligação íntima com a clínica, com as doenças das pessoas que chegam aos hospitais. Assim, a lista dos cancros mais investigados em Portugal coincide em grande medida com a lista das neoplasias que mais afectam os portugueses.

Outra das “coincidências” que o estudo mostra está na relação entre o aumento do investimento na ciência e o aumento do número de publicações científicas. Mais uma coisa que não aconteceu por acaso. “A partir dos anos 80 e especialmente de meados dos anos 90 do século XX, ocorreu uma claro aumento das publicações em oncologia, em linha com a consolidação de uma política de ciência e tecnologia em Portugal, que, por sua vez, recebeu um enorme impulso com a entrada do país na União Europeia”, refere ao PÚBLICO Oriana Rainho Brás, que coordenou este trabalho na Aspic e que também é investigadora no Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), da Universidade de Lisboa. “A linha do número de publicações segue de perto as mudanças políticas, no sentido de existir uma política de investigação em Portugal, e é uma linha que também se verifica noutras áreas de investigação, não só na oncológica”, reforça a investigadora.

O projecto, que começou em Janeiro de 2016 e termina (oficialmente) no final deste ano, uniu especialistas em oncologia, ciências sociais e sistemas de informação, que em Outubro publicaram um artigo na revista Scientometrics. Os investigadores consultaram bases de dados (Medline/PubMed e Web of Knowledge) que registam uma grande parte dos artigos publicados nas revistas científicas procurando filiações portuguesas. Além de artigos científicos, consideraram ainda outro tipo de publicações como resumos de reuniões, artigos de revisão, comentários, entre outros.

Feitas as contas, chegou-se a um total de 5725 publicações na área da oncologia feitas em Portugal durante 39 anos. Foram seleccionados todos os artigos que tinham “uma morada” portuguesa na filiação de qualquer um dos autores. Oriana Rainho Brás admite que a amostra não é exaustiva e que foram feitas algumas escolhas. “Não podemos afirmar que temos aqui todas as publicações produzidas na área da oncologia em Portugal neste período. Estamos sujeitos às revistas que estão nas duas bases de dados que usámos, que, ainda assim, são duas das maiores e que incluem as publicações de maior impacto internacional. É o mais exaustivo que conseguimos.”

O artigo refere, por exemplo, que até 1994, um período em que o investimento em ciência e tecnologia era bastante limitado, os oncologistas portugueses publicavam menos de 50 artigos por ano. José Mariano Gago (1948-2015) chegou ao Governo em 1995, como ministro da Ciência e Tecnologia, a primeira que existiu um ministério só para a investigação científica, e houve um grande investimento nesta área. “Entre 1998 e 2000 passam a ser mais de 100 artigos por ano e em 2014 já estamos a falar de 683 artigos publicados nesse ano”, acrescenta a investigadora.

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Mas, o estudo vai além da mera contabilização de publicações de cientistas a trabalhar em Portugal, também se procurou saber, através das mesmas, onde e como se faz a investigação oncológica, o que, segundo Oriana Rainho Brás, se enquadra numa análise chamada “cientometria”.  “Percebemos que a investigação decorre tanto em instituições académicas (universidades, centros de investigação e laboratórios) como hospitalares e que estas instituições colaboram entre si”, refere um comunicado sobre o estudo. Ou seja, há um diálogo entre as instituições que não estão desligadas da realidade portuguesa. “As tecnologias mais inovadoras e terapêuticas que estão a ser produzidas, também estão a ser usadas e testadas – e ajudar outros a testar – na prática clínica.”

Outro dos resultados deste trabalho financiado pela Fundação Gulbenkian, a farmacêutica Bristol Meyers-Squibb e a Aspic, foi a percepção do tipo de colaborações internacionais que os investigadores portugueses procuram. Assim, se é fácil de concluir que as parcerias com instituições europeias têm um papel principal, o estudo também mostra que, mais recentemente, há mais projectos em co-autoria com investigadores nos EUA e no Brasil.

“Trata-se de um trabalho totalmente inovador em Portugal, este de se conhecer e dar a conhecer o que foi feito, em que instituições, sobre que temas, usando que metodologias, no âmbito de que tipo de colaborações (nacionais e internacionais)”, refere Oriana Rainho Brás, defendendo que os resultados podem ser úteis para definir “estratégias de acção” para resolver eventuais lacunas ou dificuldades.

E, num trabalho onde se destaca a evolução e expansão da investigação oncológica em Portugal, foram detectadas falhas? Um dos maiores problemas, constata a investigadora, é precisamente a falta de estudos, sobretudo estudos epidemiológicos. Sabemos cada vez mais sobre o cancro, as suas estratégias celulares, foram identificados alguns pontos fracos que permitem desenvolver estratégias de ataque mais eficazes, mas ainda há muito a compreender sobre o que está à volta destes doentes.

“Face à relevância que têm os problemas oncológicos em Portugal, encontrámos poucos estudos epidemiológicos que ajudam a perceber como é que a população é afectada e que podem identificar padrões sociais ou económicos que podem ajudar a explicar as incidências deste ou daquele cancro”, refere a investigadora. De facto, nota, os investigadores em Portugal parecem preferir procurar outro tipo de dados oncológicos, investindo mais na investigação mais básica, por exemplo, no estudo da dinâmica celular.

“Para cumprir a sua missão de dar a conhecer o que se faz em investigação em cancro em Portugal, a Aspic entendeu que seria fundamental implementar um estudo que mapeasse o que foi publicado nesta área desde 1976, altura em que começa a haver publicação consistente feita por investigadores portugueses com impacto internacional”, conclui Leonor David, cientista do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), no Porto, e uma das coordenadoras do estudo lançado em 2016, quando era presidente da Aspic, citada no comunicado. “Essa informação é fundamental quer para o interior da comunidade dos investigadores em cancro quer para o público em geral.”

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