Sistema Complementar da Segurança Social e poupança para a reforma
Assegurar a adequação do rendimento da pensão na reforma das actuais e futuras gerações implica agir com muitíssima antecedência, de modo a, com tempo, planearmos e realizarmos as alterações necessárias.
Para a maioria das pessoas não são claros os problemas que o sistema público de pensões enfrenta. Mas está claro para aqueles que acompanham de perto o sistema que Portugal conhecerá uma acentuada queda das taxas de substituição (quociente entre montante da pensão e montante do salário). Esta tendência, que já está no terreno, poderá colocar em causa a capacidade de o sistema público de pensões cumprir um dos seus principais objectivos: garantir adequadamente a protecção na velhice.
O envelhecimento demográfico está a impor correcções na redistribuição do consumo e do rendimento ao longo do ciclo de vida. Sendo maior a longevidade, é necessário gerar mais rendimento e/ou acumular mais poupança durante a vida activa. O Sistema Complementar e a poupança para a reforma assumem neste contexto uma importância acrescida.
Recordemos que a Segurança Social está organizada em torno de três grandes sistemas: o Sistema de Protecção Social de Cidadania, o Sistema Previdencial e o Sistema Complementar.
O Sistema Complementar, como o próprio nome indica, exerce uma função de complementaridade em relação aos outros dois sistemas, com os quais se articula. A lei reconhece que os regimes complementares que compõem o Sistema Complementar são “instrumentos significativos de protecção social, concretizada na partilha das responsabilidades sociais, devendo o seu desenvolvimento ser estimulado pelo Estado através de incentivos considerados adequados”.
O Sistema Complementar abrange três categorias de regimes: (1) o regime público de capitalização da responsabilidade do Estado financiado pelos trabalhadores que queiram aderir, (2) os regimes complementares de iniciativa colectiva, promovidos e financiados pelas empresas ou por grupos profissionais a favor dos seus trabalhadores, e (3) os regimes complementares de iniciativa individual que assumem a forma de planos de poupança reforma, seguros de vida, seguros de capitalização e modalidades mutualistas.
Os três regimes têm um denominador comum: (a) a criação de mecanismos de poupança privada tendo em vista assegurar prestações complementares às concedidas pelo sistema previdencial, designadamente no que se refere à pensão pública, e (b) a gestão das contribuições recebidas em capitalização pura, através do seu investimento no mercado de capitais e no mercado imobiliário, administrada de maneira profissional por entidades que podem ser públicas, cooperativas e privadas.
Dispomos, portanto, de uma arquitectura do Sistema Complementar e de um quadro claro sobre os seus objectivos e princípios de funcionamento.
Quem não se lembra da criação em 1989, pela mão do então Ministro das Finanças Miguel Cadilhe, dos “planos de poupança reforma (PPR)” para permitir incentivar a poupança de longo prazo completando os esquemas de segurança social proporcionados pelo Estado. A sua função eminentemente social conferiu-lhes, então, um regime favorável de benefícios fiscais em IRC e IRS. No entanto, o quadro de benefícios fiscais em IRS foi sofrendo ao longo do tempo grande erosão. Hoje está reduzido aos mínimos. E a flexibilização do regime de resgate foi descaracterizando o PPR, enquanto produto de poupança de longo prazo para a reforma.
Ora, o que é que mudou que tenha justificado o abrandamento das políticas de incentivo à poupança de longo prazo para a reforma? O que é que explica a falta de desenvolvimento de uma cultura de responsabilização individual e colectiva? A realidade que temos hoje justificaria, pelo contrário, que tivéssemos seguido um caminho de reforço do Sistema Complementar, a par do caminho seguido pela maioria dos países da UE e da OCDE que enfrentam realidades semelhantes.
Temos um Sistema Complementar atrofiado: cobre uma muito pequena parcela da população activa e do universo empresarial e contribui pouco para o conjunto de rendimentos de substituição recebidos pelos pensionistas em situação de reforma.
Com efeito, em 2016 apenas 6,2% da população activa - 320 mil trabalhadores – estava abrangida por regimes complementares de iniciativa colectiva (ex. fundos de pensões fechados) e de iniciativa individual (ex. PPR). Se excluirmos os fundos de pensões do sector das actividades financeiras, então a cobertura rondará 3% da população activa.
Apenas cerca de 2.030 empresas tinham planos de pensões financiados por fundos de pensões, ou seja, 4,5% do universo das empresas com mais de 10 trabalhadores.
Em 2016, apenas 1,3% da população activa tinha poupança investida em PPR. O facto de o escalão etário até aos 30 anos representar apenas 2% (1.303 participantes) do total da pirâmide etária investida em PPR é revelador do nível de alheamento das gerações mais novas.
Quanto ao regime público de capitalização, criado no âmbito da reforma de 2007, as notícias não são melhores: os números evidenciam a falta de adesão dos trabalhadores aos certificados de reforma geridos pelo Estado. Em 2015, registava 7.618 aderentes.
A percepção de que o sistema público de pensões poderá assegurar no futuro o essencial da pensão de reforma, a falta de transparência do sistema público de pensões - que se traduz no desconhecimento de aspectos tão essenciais como o nível da pensão futura ou o nível de poupança necessária para a obtenção de uma pensão de reforma - e o baixo grau de literacia financeira são factores que concorrem para a ausência de uma cultura de partilha de responsabilidades – entre trabalhadores, empresas e Estado – e de diversificação de fontes de rendimento.
A menor generosidade dos incentivos fiscais à adesão de planos de base individual, a queda acentuada da taxa de poupança das famílias e empresas e a desigual repartição do rendimento contribuem, também, para o actual “estado da arte”.
A cultura empresarial neste domínio também não tem ajudado, dada a falta de estratégias que valorizem uma abordagem salarial integrada que concilie benefícios imediatos e benefícios diferidos, assim como não ajuda o défice de participação das estruturas sindicais e patronais numa lógica de inclusão dos benefícios diferidos na contratação e negociação colectivas.
Agir sobre o Sistema Complementar implica uma intervenção política firme e inequívoca em várias frentes, designadamente na promoção da sensibilização da população em geral sobre a evolução da pensão pública, no investimento em literacia financeira, na revisão da lógica do actual sistema de benefícios fiscais de poupança de base individual e profissional e no envolvimento da Concertação Social na dinamização das poupanças de base profissional. A regulação deve ser reforçada em matéria de portabilidade de direitos e de protecção do consumidor, assim como se deve centrar nos aspectos relativos à inovação da digitalização.
Assegurar a adequação do rendimento da pensão na reforma das actuais e futuras gerações implica agir com muitíssima antecedência, de modo a, com tempo, planearmos e realizarmos as alterações necessárias. Precisamos de tempo para ajustarmos comportamentos, para fazermos com antecedência as opões certas, incorporando-as na cultura de vida, para que aquilo que se nos afigura estranho e desnecessário seja tratado como algo normal. A sociedade civil tem, naturalmente, responsabilidades neste desiderato, mas o papel do Estado é insubstituível porque lhe compete assegurar que o contrato social que lhe está confiado é bem administrado.
CIDADANIA SOCIAL - Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais - www.cidadaniasocial.pt