Grandes Cheias de 1967: a noite do fim do mundo
Na madrugada de 25 para 26 de Novembro, a água tomou de assalto os arrabaldes pobres que Lisboa não conhecia. Morreram mais de cinco centenas de pessoas.
A noite ia alta quando Joaquim, marido de Maria Emília, voltou do trabalho. O ajudante de camionista parou com uns conhecidos em Castanheira do Ribatejo e ajudava a suportar a porta de um café que a força da água queria deitar abaixo.
— Se tu estás aqui a salvar-te e a salvar-nos, que fará da tua família, disse-lhe um amigo.
— Mal todos os das Quintas se a água chega à minha família. Apressou-se.
Em Quintas, os relógios pararam às 2 horas da manhã. Por essa hora, a água chegou ao tecto do quarto onde Maria Emília dormia. O inferno chegou com a noite. A água ultrapassou os telhados na várzea do pequeno lugar enfiado num vale a meia dúzia de quilómetros do centro de Castanheira do Ribatejo, em Vila Franca de Xira. Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967, as cheias levaram metade da povoação. Contaram-se 94 mortos.
Dia 25 era um sábado e até as famílias de fora tinham vindo à terra. A chuva caiu durante todo o dia. Miudinha. À noite abateu o dilúvio. Era madrugada alta, estava muito escuro e poucos se deram conta. Ninguém esperava que a água entrasse, sem aviso, em poucos minutos e levantasse as camas até ao tecto. Lá ficaram as marcas da ondulação, dos berços, dos dedos enlameados à procura de socorro.
Mariana Guerra afastou com as mãos a lama para encontrar a trança da irmã. Maria Emília estava junto à porta do seu quarto. Mais à frente, o filho bebé, depois as duas crianças. “Estava um arame entrançado na trancinha dela. Era tudo lodo. Então, limpámos muito bem a carinha. E eu disse: ‘Olha a minha irmã está aqui’.” Mariana fala da irmã sempre com diminutivos. Às vezes, a fala pausada, fininha, de miúda, demora-se nas descrições. Fica, fixa, a olhar em frente porque ainda hoje consegue ver tudo.
Passaram 50 anos. Mariana tem o peixe ao lume e as recordações voltam-lhe de rompante, interrompendo-lhe a serenidade e a preparação do almoço. Quer mostrar as fotos da irmã, que andava a buscar desde manhã cedo. As mãos tremem-lhe tanto como a voz — e o sopro da água a escaldar — ao pegar nos retratos esbranquiçados da mulher bonita e dos seus filhos de cabelos lisos e olhos grandes. Mariana tinha 29 anos quando foi enterrar a irmã de 31.
“Ai Maria”
As casas eram velhas, “contavam-se pelos dedos as que tinham condições mínimas”. Não havia esgotos. António Macedo, que ia a Quintas — a terra da mulher — passar o fim-de-semana, não sabe como se chamavam casas a algumas “estruturas enfaixadas”. As telhas não tinham forro, o chão era a terra.
“A tromba de água caiu num instante” e o Rio Grande da Pipa encheu com a mesma rapidez. A ponte junto ao cano de Alviela entupiu com o que a enxurrada levara — o campo, que antes era repleto de caniços e oliveiras, ficou despido. A água acumulou-se a montante. As paredes romperam, as casas foram levadas na corrente. Quem se salvou andou a partir muros para mandar embora o que não pedira para entrar.
Os corpos foram alinhados à porta da casa onde Luísa Fajardo vivia com os pais. Cada um colocado sobre os taipais de madeira que o pai tinha trazido da fábrica da Ford — que nunca mais voltou a usar.
Naquela noite, Luísa, de 13 anos, queria ficar no aconchego da avó, mas esta não deixou. Ficou lá a irmã, um ano mais velha, a dormir na casa na parte baixa do lugar de Quintas, junto ao rio e à escola, a dois passos da ponte. Luísa dormiu na casa dos pais, umas ruas acima.
De madrugada, a mãe jurava que ouvia gritar. A luz, instalada na aldeia um ano antes, não deu de si. O pai tentou descer várias vezes, sem que a água e as terras o deixassem.
A dimensão das chuvas chegou-lhes com a exclamação de um vizinho. O homem entrou-lhes em casa, resguardando a cabeça num saco de sarapilheira: “Ai Maria, tanta gente morta nesta aldeia.” Outros foram chegando à medida que o breu desaparecia. “Tinham deixado os seus mortos em casa. Vinham encharcados. E a minha mãe, da pouca roupinha que tinha, ainda assistiu essa gente toda.”
Na manhã em que o sol mostrou o fim do mundo, o pai foi lá em baixo e voltou outro homem. “A casa nem telhado tem, não está lá nada dentro”, descreveu à família. Ficaram as empenas e, na escola, os degraus da entrada. O corpo do avô foi o último a aparecer, nove dias depois, ao pé do Tejo. Nessa noite, Luísa perdeu 28 familiares.
E continuou a chover por mais três ou quatro dias.
Debaixo da lama
Na madrugada de sábado para domingo, a água inundou rapidamente as zonas baixas da península da capital — de Vila Franca de Xira, Alenquer, Loures, Odivelas a Oeiras — e as histórias repetiram-se: as das famílias refugiadas nos telhados, daqueles que não saíram a tempo, dos que voltaram atrás, dos guarda-fatos caídos, das portas que se fecharam, dos carros arrastados. Foram cheias rápidas: o Tejo e os afluentes subiram três a quatro metros em poucas horas.
Morreram centenas — o Estado Novo falou em 462 mortos, os jornalistas Pedro Alvim, Joaquim Letria e Fernando Assis Pacheco contaram perto de 700. (leia a crónica de Pedro Alvim “Os mortos e os fósforos" associada a esta reportagem)
Morreram os pobres, que viviam em habitações precárias nos leitos de cheia, construídas ilegalmente enquanto Lisboa crescia para fora da cidade. E os pobres em sorte, que habitavam os andares baixos e as caves, que dificilmente deram pela entrada da água.
A lama, que cobriu os destroços e os mortos, pôs a descoberto a miséria. “Os estudantes associativos, a elite política das universidades, comunistas, católicos progressistas, esquerdistas e muitos voluntários atraídos por uma solidariedade que não sabiam ser proibida iam pela primeira vez conhecer o Portugal sobre o qual falavam em abstracto nos panfletos”, retrata o historiador António Araújo.
Na manhã de domingo, poucos jornais chegaram ao Ribatejo. “Houve inundações em Vila Franca e o comboio não passou”, disse o ardina do Entroncamento a António Macedo, que saía da beira da mãe para ir ao encontro da família em Quintas. Àquela hora da manhã, a telefonia a pilhas dava conta dos primeiros “três ou quatro mortos” na freguesia dos Cadafais, em Alenquer. Viriam a aparecer corpos até 14 de Janeiro. Por essa altura, o Governo já tinha deixado de os contar.
A censura ligou: “Não morre mais ninguém”
“Chuva e morte: mais de 200 vítimas” titulava o Diário de Lisboa na primeira página de domingo. Nesse dia, cada jornalista foi enviado para o seu lado. Alice Vieira foi para Quintas, nos carros que os estudantes, reunidos no Instituto Superior Técnico, tinham organizado para levar quem quisesse ajudar. À data, tinha 24 anos e era enviada pelo Diário de Lisboa.
Três dias depois, “427 mortos” eram confirmados pelo Diário de Notícias. Fontes oficiais chegaram a falar de 462 vítimas mortais.
Depois, a censura ligou: “A partir desta hora, não morre mais ninguém”, disse um dos funcionários dos serviços da censura ao jornalista da Rádio Clube Português João Paulo Guerra, amigo de Alice Vieira. “A censura carregou com mão de ferro, cortando notícias, distorcendo informações, impedindo os números certos de ser divulgados”, porque nessa altura o Governo de António de Oliveira Salazar percebeu “que seria perigoso deixar que as pessoas soubessem a dimensão exacta do que estava a acontecer”, conta a escritora. “A censura falava quase de cinco em cinco minutos.”
Desde segunda-feira, dia 27, que enviava telegramas às redacções: “Gravuras da tragédia: é conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos”, cita o trabalho de Francisco da Silva Costa, Miguel Cardina e António Batista Vieira, “As inundações de 1967 na região de Lisboa: Uma catástrofe com diferentes leituras”. Na quarta-feira, determinava-se: “Os títulos não podem exceder a largura de meia página e vão à censura. Não falar no mau cheiro dos cadáveres. Actividades beneméritas de estudantes — Cortar.”
Alice Vieira “só queria gritar às pessoas: ‘Vejam lá o que está a acontecer às portas de Lisboa’”. Como outros jornalistas, via pela primeira vez as “terríveis condições em que muita gente vivia, com casas de construção tão precária que eram incapazes de aguentar o embate das águas, gente amontoada em bairros clandestinos”. Percebeu de imediato que “o que estava a acontecer era a prova da miséria que alastrava no país e isso a ditadura não permitia que fosse conhecido”.
“Um lamaçal de perder de vista. A lama dava-nos para cima dos joelhos e a gente punha as mãos na lama e trazíamos animais mortos. E aquilo era um cheiro. Ainda hoje me lembro desse cheiro.”
O cenário, que só se lia nas entrelinhas, foi por fim dado a conhecer aos portugueses, a 2 de Dezembro, nas fotografias que O Século Ilustrado conseguiu publicar.
O país nunca soube ao certo quem morreu. Para os autores do estudo sobre as “diferentes leituras” da catástrofe, é seguro falar em “500 mortos”. Na semana seguinte ainda se retiravam corpos “das lamas acumuladas em Algés e se continuava a falar de desaparecidos” que teriam sido levados pelo Tejo. “Nestas situações, e em especial quando os poderes públicos não querem revelar toda a dimensão da tragédia, a imprecisão é grande”. Mês e meio depois, o tema já não vinha nos jornais.
“Até na morte é triste ser-se miserável”
Era 1967: a Guerra Colonial ia a meio e faltava pouco menos de um ano para Salazar passar a presidência do Conselho de Ministros a Marcelo Caetano.
O Governo atribuiu às cheias uma retórica de fatalismo. Dizia o Ministério de Interior, numa nota oficiosa, que “somente a violência do fenómeno de carácter excepcional” poderia explicar “cabalmente a grandeza dos prejuízos causados”. Os jornais próximos apoiavam o “carácter inesperado da catástrofe”, dando ênfase à “onda de comoção gerada”. Para um desses jornais, o Diário da Manhã, esta “cadeia de solidariedade humana” era o reflexo da “vitória do homem, que a natureza tinha esmagado”.
O tempo passou e os autores que se debruçaram sobre o assunto dividiram as culpas.
Choveu tanto na noite de 25 para 26 que chegou a um quinto daquilo que choveu no ano todo. E eram anos de chuvas: só no ano anterior (1965-66) houve 20 inundações em Lisboa e foi aquele em que choveu mais (1214 l/m2) num período de 80 anos, entre 1918 e 1998, concluíram Pedro Elias Oliveira e Catarina Ramos, autores do estudo sobre as Inundações na Cidade de Lisboa durante o século XX.
A recessão da actividade agrícola nos 40 anos anteriores deixou os solos nus de vegetação e ao abandono. Consequência da expansão urbana, os terrenos perderam permeabilidade e a água ficou à superfície. Havia “estrangulamentos artificiais” que a impediam de escoar e esgotos igualmente incapazes de a drenar, compila o estudo de Francisco da Silva Costa. Mas o cerne da questão era social.
“Na realidade, a água foi muita. Mas se as ‘casas’ (barracas) fossem verdadeiras casas, teriam sido arrastadas pelas águas?”, questionava a 10 de Dezembro o Comércio de Funchal, um semanário crítico do regime.
Acossados pelo regime, que os acusava de “perturbarem a ordem”, estudantes e a imprensa não afecta ao salazarismo afastavam a hipótese de o fenómeno natural justificar a dimensão da tragédia. O Solidariedade Estudantil, boletim dos estudantes que se organizaram para apoiar as populações afectadas, deu a conhecer as estatísticas do Serviço Meteorológico Nacional que mostravam que tinha chovido mais no Estoril, uma zona rica de Cascais, onde não houve mortes nem grandes danos materiais.
Para o Comércio do Funchal, cita o estudo de Francisco da Silva Costa, a culpada pela maioria das mortes era a “miséria que a nossa sociedade não neutralizou”. “Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser”, lia-se.
Eram “zonas mártires de inundações”, apelidava o Avante!, o jornal do Partido Comunista, então na clandestinidade, na edição de Dezembro de 1967. “As inundações não teriam originado semelhante tragédia se o Governo se tivesse preocupado em resolver da habitação para os trabalhadores, se tivesse cuidado da regulamentação dos rios e da defesa das populações ribeirinhas, se tivesse tomado as medidas de emergência que as circunstâncias impunham.” “Porque não foram destruídos pelas chuvas diluvianas os bairros residenciais de Lisboa, mas sim os bairros de Urmeira, Olival Basto, Pombais, Quinta do Silvade, Odivelas?”, questionava.
A memória colectiva das cheias é escassa. Não há livros publicados. “Não me lembro de a censura ter agido com tanta força noutra altura e isso nota-se”, diz Alice Vieira. “Se as coisas não aparecem nos jornais nem nas televisões, não existiu, não é? As pessoas não se metiam em políticas, como se dizia. Nunca entenderam o que é que aquilo foi.”
A real dimensão da catástrofe “não ultrapassou a espessa cortina da censura”, como nota o estudo de Francisco da Silva Costa, nem mesmo nos anos recentes, quando autores como o geógrafo Fernando Rebelo consideraram as cheias de 1967 uma das três grandes catástrofes em Portugal, juntamente com o terramoto de Lisboa de 1755 e o aluvião do Funchal de 1803. A academia estudou mais os fenómenos meteorológicos e os efeitos no solo do que as consequências sociais e os impactos políticos. E isto, tece a historiadora Ana Paula Torres, que se dedicou ao estudo das cheias no concelho de Oeiras, “é a prova de que esta foi uma das campanhas de silêncio mais eficazes de Salazar”.
O bombeiro
Vasco Pereira abre a porta de duas voltas e segue de passos rápidos, apoiados numa canadiana, a acender as luzes. Dá a volta à capela de São Sebastião, em Barcarena, e pára depois do altar para apontar para o coro. Era ali, no andar de cima, o quarto dos pais de uma família de sete que “durante anos” viveu na capela. “À entrada, lá ajeitaram as coisas.” Usavam o pequeno corredor lateral, mas nunca o altar nem o redondo da assembleia daquela igreja agora usada para cerimónias fúnebres.
A família perdeu a casa, no Bairro dos Pescadores, para a cheia. Por isso, o padre João — “um canadiano” — ofereceu-lhes a capela por uns tempos. Os filhos ainda casaram por lá.
Vasco tinha 35 anos nas cheias. Estava desde os 16 nos bombeiros de Barcarena e já tinha as memórias marcadas pelas explosões na Fábrica da Pólvora. Havia de ver e socorrer outras tantas, mas não há forma de esquecer o domingo da “enxurrada”. “Ninguém sabia o que vinha com a chuva. Mas, quando o domingo passou, os ânimos acalmaram. Olhámos à volta e vimos que afinal em Barcarena não se tinha passado nada de especial.”
Nos dias seguintes, foram recolher e distribuir roupas, alimentos e móveis. Alguns foram ajudar as populações “que acatavam os seus mortos em frente ao Palácio de Queluz”. “Era o ofício dos bombeiros.” (leia “Às 4h da manhã começaram a chegar cadáveres de homens, mulheres e crianças”, o relatório da corporação de bombeiros de Odivelas nas 48 horas que se seguiram às cheias, associado a esta reportagem)
O Estado parado
O que não podiam escrever nos seus jornais, Alice Vieira e Fernando Assis Pacheco, acabados de sair do curso de Filologia Germânica, contaram à revista alemã Quick (que saiu de circulação em 1992). “Contámos tudo o que vimos e o que aquilo representava. Aquilo era a falência do Estado.”
A imprensa internacional foi o socorro dos jornalistas nacionais e não escapou, por isso, às amarras do regime. A PIDE interrogou o então correspondente da United Press International, Edouard Khavessian, depois de a agência ter publicado sobre os protestos estudantis contra a inacção do Governo.
As estradas em Quintas eram de terra batida, estreitas. Não havia comunicações nem como comprar mantimentos. Os bombeiros foram os primeiros a chegar. Depois, os estudantes.
Para Alice Vieira, os bombeiros em Quintas eram iguais àqueles que, um ano antes, tinham estado em Sintra a enfrentar o fogo que consumiu a serra e matou 25 militares. Nem uns nem outros “sabiam como travar aquilo”. “Como se trava uma calamidade destas com tão poucos meios? Sem comunicações. Estava-se preso às cabines. E eles, pobres, nem sabiam bem o que haviam de fazer.” A GNR e a PSP? “Nada.”
Nos primeiros dias, “as autoridades do regime ficaram paralisadas”. Moveram-se os estudantes, perto de seis mil, uns a pedido das associações católicas, outros pelas suas próprias organizações — entre eles, António Guterres, Diana Andringa, Helena Roseta, José Pacheco Pereira, Marcelo Rebelo de Sousa, Mariano Gago. Aí também os estudantes se aperceberam das condições paupérrimas das populações e da passividade das autoridades. “Não só a mobilização dos universitários foi muito importante, como contribuiu para os universitários verem a realidade do país”, nota Alice Vieira. “Aquilo deu-lhes a imagem do que era o regime.”
Durante duas semanas, os estudantes reuniram-se em Lisboa numa comissão que funcionava na associação de estudantes do Instituto Superior Técnico, da qual fazia parte a Juventude Universitária Católica e associações de estudantes do Porto e Coimbra. Organizaram-se brigadas de estudantes de Medicina que vacinavam contra a febre tifóide, outros limpavam casas e ruas, ajudavam nos funerais, recolhiam e entregavam mantimentos, educavam para a segurança sanitária. No total, compilou o historiador António Araújo, esta comissão deu mais de mil refeições por dia, envolveu 5760 estudantes em 44.080 horas de trabalho voluntário.
E a sua vontade de tirar estes acontecimentos da sombra era quase palpável: a primeira edição do Solidariedade Estudantil, com 10 mil exemplares, esgotou numa manhã.
Depois apareceu o Movimento Nacional Feminino, a Cruz Vermelha, a Mocidade e a Legião Portuguesa, as forças armadas. “Andavam por lá freiras e jovens estudantes a lavar casas, nomeadamente em Caneças e em Odivelas”, recordou Raul da Silva Pereira, numa entrevista publicada no livro Habitação e Sociedade. No Natal, a Marinha ainda servia refeições em Quintas. “A dada altura, estava toda a gente lá, mas não como o regime dizia: a nação estava profundamente dividida. De um lado, os estudantes e cidadãos de atitude mais crítica que, não estando inseridos na lógica corporativa do regime, eram logo desacreditados. Do outro, associações do aparelho do Estado”, diz Ana Paula Torres.
Há um consenso generalizado: para muitos estudantes, esta foi a primeira tomada de consciência política. Para outros, marcou a ruptura definitiva com o Estado Novo. “Os estudantes saíram da academia e despegaram-se das reivindicações focadas nas questões pedagógicas, na comida da cantina e o preço das propinas, para assumirem um papel de maior intervenção social”, nota a historiadora.
António Araújo, no capítulo As cheias de 1967 e o progressismo católico português, na sua tese de doutoramento, vai mais longe: “O movimento de solidariedade teve como efeito não só um conhecimento muito próximo — e dilacerante — da realidade social por parte de milhares de estudantes, como uma politização destes num sentido vanguardista, a ponto de alguns, como Pacheco Pereira e Jorge Simões, afirmarem que foi desde então que o Partido Comunista Português foi ultrapassado no meio estudantil.” Pacheco Pereira viu um novo país emergir das cheias de 67: “Subitamente, apercebemo-nos de que em Portugal havia gente que vivia na miséria e que todas as estruturas que a deviam proteger não funcionaram.”
O acordar
Depois, “o regime acordou”. “Os seus ministros multiplicaram-se em reuniões e visitas aos concelhos mais atingidos” — Américo Thomaz, o Presidente da República, foi a Quintas —, fizeram-se inquéritos nas juntas de freguesia, montaram-se postos informativos e atribuíram-se subsídios, enumera Ana Paula Torres. A Cruz Vermelha e a Fundação Calouste Gulbenkian reconstruíram estradas e bairros — por isso se chama Gulbenkian a rua onde Mariana Guerra mora desde 1972.
E, recorda António Araújo, “chegaram donativos dos governos britânico e italiano, do principado do Mónaco, e o general De Gaulle chegou a contribuir com uma ‘dádiva pessoal’ de 30.000 francos”. Espanha ofereceu mil doses de vacina contra a febre tifóide e uma subscrição do Diário de Notícias, em conjunto com a da Cruz Vermelha, arrecadou 25 mil contos de receita.
Seguiram-se leis para alterar o regime jurídico dos terrenos e impedir a construção em leitos de cheia. Só aí se tornou “obrigatório o licenciamento dos terrenos privados situados nas zonas críticas e das obras neles inseridas”, prossegue Ana Paula Torres. O “ensinamento da catástrofe” revelou-se “fundamental na legislação portuguesa”, não resolveu tudo, mas permitiu diminuir as “vulnerabilidades” face ao risco de cheia rápida, acreditava o geógrafo Fernando Rebelo. Quando choveu com a mesma intensidade em Novembro de 1983 e em Fevereiro de 2008, a destruição repetiu-se, mas a crise “esteve longe” da de 1967, reparou o especialista no estudo “Um novo olhar sobre os riscos: O exemplo das cheias rápidas em domínio mediterrâneo”.
José Saldanha Matos, especialista em hidráulica, também não tem dúvidas de que as cheias de 1967 “aumentaram a consciencialização e o controlo” sobre as construções em zonas de risco. “Há 50 anos, as pessoas tinham muretes na linha de água que foram levados pelas cheias e criaram autênticas barragens e impediram a água de circular. O que já não é possível”, muito à custa das normas da directiva europeia contra as inundações — Directiva-Quadro Água, da criação de zonas especiais e de planos para mitigar os efeitos das alterações climáticas, nota.
Os perigos agora, numa região densamente povoada como a da capital, são outros. É certo que as precipitações intensas vão sempre ocorrer — e ainda é muito difícil de prever quando — e “a sua gravidade vai aumentando à medida que o território ocupado também aumenta”. É maior a “cascata de efeitos”, na expressão usada pelo especialista: nos serviços públicos, nos transportes, nas telecomunicações e na energia. E a permeabilidade dos solos cai “drasticamente” com a ocupação intensiva. A continuar esta tendência de o betão tirar lugar ao solo infiltrável, as águas das chuvas vão ficar cada vez mais à superfície e, com isso, “correr mais rápido”. “Agora, acontece que a mesma precipitação dá um efeito mais grave”, sublinha José Saldanha Matos, um dos autores do plano geral de drenagem de Lisboa.
O mês de Novembro
Em Quintas, na manhã de domingo, outros corpos foram acatados no largo junto à fonte, onde escadas e portas serviam de maca. Eram lavados, levados para o cemitério. A maioria nunca constou nas contas oficiais.
O que o regime não fez, Luísa Fajardo e um amigo, morador em Quintas, quiseram fazer: o registo de todos os que ali perderam a vida, com os seus nomes, idades, famílias. “Foi a nossa forma de dar um nome e dignidade àqueles que perdemos”, os mortos “que Salazar não quis nem ouvir falar”, explica Luísa. “Lembro-me de ouvir: tem cuidado, vê lá o que dizes. Depois da dor, ainda havia o medo.”
Luísa mora na casa que fora dos pais — na altura, de chão de terra sob a telha vã (sem forro). Encostada a um armário com vasos de flores, de camisola de tons rosa, suspira ao fim de uma lufada de recordações.
Fizeram-se os funerais. Retirou-se a lama. Limparam-se as ruas. Reconstruíram-se as casas em lugares mais altos — a povoação migrou uns metros para cima. Dificilmente se limpou a memória. Facilmente Luísa se lembra da irmã: é um cheiro, é um toque, é uma expressão mais arrebitada, é o frio, é a chuva. Os novembros “são um desastre”. Não há dia em que não volte àquela noite.
“A minha mãe a ficar sem uma filha e sem os pais no mesmo dia foi muito doloroso. Se eu já era adulta porque trabalhava desde os 11 anos, aí eu tive de ser mesmo mulher. Só não o imagina quem nunca perdeu ninguém. Ela ficou de rastos a vida toda.”
Apoio psicológico era coisa “que não se usava”. E 50 anos depois há quem nunca tenha conseguido fazer o luto. “Quanto mais anos passam, mais vincado fica. E a mim estava a acontecer-me isso. A saudade era cada vez maior.” O tempo não curava e, há poucos anos, Luísa procurou ajuda para não se “aninhar” na tragédia. Ficou melhor. Há dois anos não teria falado connosco.
Em 1967, os apoios tardaram. Quando chegaram, foram aproveitados “por quem tinha cabeça para tudo — quem não tinha passado por nada”. Nenhum governo ou associação alguma vez lhe voltaram a falar de ajuda. “Quem procurou procurou, quem não procurou passou e toda a gente se esqueceu”, diz Luísa.
“Aos 63 anos, estou a aprender a conseguir viver com isto. Sarou um bocadinho, não curou. Há quem nunca venha a fazer o luto. E é assim. É o país que temos.”
Este ano, a terra está seca, pedrosa. Quintas é castanha e verde, com casas brancas, mas mesmo assim parece a Luísa que Novembro chegou mais cedo. De uma maneira ou de outra, a tragédia de Pedrógão Grande e os incêndios de 15 de Outubro entraram naquele lugar e aparecem nos discursos de todos. Até do Presidente da República que, a propósito da divulgação dos nomes das vítimas do incêndio de Pedrogão, recordou como, “há 50 anos, era possível haver tragédias e nunca ninguém percebia bem quais eram os contornos”. Mas Luísa só consegue comparar o “sufoco e uma falta de comunicações tão parecida”. António Macedo fala “na mesma solidariedade” dos portugueses. Alice Vieira recorda a “mesma sensação de ver o mundo a acabar”.
Antes das cheias, Mariana Guerra achava que Quintas era um lugar “bonito, de quintais arranjadinhos, com um larguinho que era lindo”. A beleza era também das pessoas — “mesmo sem ser de sangue, era tudo uma família”. Agora, o lixo amontoa-se nos terrenos ao abandono e contorce a memória. “Se aquilo estivesse limpinho, a gente pensava que elas tinham ido trabalhar. Uma pessoa pensava nelas e pensava bem. Assim é uma tristeza.”
Esta reportagem encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO