Os mortos e os fósforos
Há 50 anos, o jornalista e poeta Pedro Alvim escreveu aquela que é considerada “uma das mais belas crónicas do jornalismo português”, como a recorda Alice Vieira
Era ao cair da tarde — e havia mortos.
Todos muito juntos, enlameados, compridos.
Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o arrumo definitivo. Ali, ali no cimento frio de um quartel de bombeiros, no fim de um domingo de Inverno.
Eu estava ao telefone, um telefone de moedas de cinco tostões, a dar para o jornal o número de mortos, os seus nomes, as suas idades.
Ia escurecendo, escurecendo, e eu já não via os nomes escritos à pressa, abreviados, secos.
Um bombeiro, uma pilha nas mãos, tentava auxiliar a minha leitura, uma leitura triste, sincopada, hesitante de quando em quando. Eu sabia que tinha os mortos todos atrás de mim, indiferentes, quietos, não se importando absolutamente nada que lhes trocasse os nomes. Mas eu não queria cometer o mínimo erro, o mais pequeno deslize.
“Se tu és João” — dizia para mim — “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.”
E teimava, teimava em ser exacto, pedia, pedia ao bombeiro que mantivesse o foco da pilha sobre o papel em que tinha escrito os nomes dos mortos. E carregava nas moedas de cinco tostões, mantinha a ligação telefónica, identificava-os um a um.
O tempo passava, o tempo passava sem luz eléctrica, e eu estava sempre ali ao telefone, e os familiares dos mortos iam entrando (que longa bicha!), identificavam os mortos, os nomes dos mortos eram-me dados, e eu dava os nomes dos mortos ao jornal.
Ouvia o choro dos vivos, ouvia o silêncio dos cadáveres, ouvia a noite lá fora — Depressa! Depressa! — diziam-me do jornal — Depressa que é para a terceira edição!
Iam-me faltando as moedas de cinco tostões, sentia-me aflito, pedia que me trocassem moedas de cinco, dez escudos.
E os nomes dos mortos continuavam na minha boca, lidos um a um, o mais exactamente possível.
Como um preito de homenagem.
Como um choro.
Chegavam aos meus ouvidos pormenores da tragédia, da chuva, da lama.
Eu carregava nas moedas de cinco tostões, afligia-me com o seu desaparecimento contínuo e, automatizado já, ia lendo os nomes dos mortos à luz da pilha.
Escuridão total.
— Acabou-se a carga! — disse o bombeiro.
O suor tomou-me o corpo todo — e os meus dedos amarfanhavam o papel com os nomes dos mortos ainda não transmitidos.
E agora? E agora? Agora que a pilha tinha dado de si — que fazer, que fazer?
— Acendam fósforos! — gritei — Estes fósforos!
E assim foi: à chama tremida do enxofre, dos fósforos, acesos um a um, fui lendo o nome dos mortos que restavam, que estavam ainda no papel, sem o mais pequeno deslize.
“Se tu és João” — dizia para mim — “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.”
Quando, finalmente, abandonei o telefone, ganhei a rua, respirei a noite, apeteceu-me loucamente um cigarro, um cigarro que me turvasse, um cigarro para esquecer aquilo tudo.
Meti, os pulmões ansiosos, um cigarro na boca — mas não pude, não pude fumar, não pude acender o cigarro: os mortos tinham queimado todos os meus fósforos.
Pedro Alvim era jornalista do Diário de Lisboa. Esta crónica foi publicada em O Homem na Cidade (Prelo Editora, 1968) e foi recuperada agora no P2, caderno de domingo do PÚBLICO