Como mostrar uma colecção privada (ou duas)

O Fórum Eugénio de Almeida mostra duas importantes colecções privadas ibéricas. Em Évora estão 70 obras de Helga de Alvear e de Luiz Augusto Teixeira de Freitas. Será também a última exposição aqui de Filipa Oliveira, a actual directora artística do centro de arte contemporânea.

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Luiza Teixeria de Freitas (à esq.) e Filipa Oliveira entre uma obra de Rebeca Horn, The Hybrid (1987) RICARDO LOPES
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“Já todos abraçámos a escultura de Franz West”, conta Filipa Oliveira, directora artística do Fórum Eugénio de Almeida, em Évora. De facto, quem entra por estes dias no centro alentejano dedicado à arte contemporânea é quase irresistivelmente convidado a abraçar a fálica escultura cor-de-rosa do artista austríaco, uma das muitas obras de arte que compõem a exposição Uma Fresta de Possibilidade, Duas Colecções em Diálogo, que dá a ver duas importante colecções privadas ibéricas.

Intitulada Together (2011), a escultura de Franz West é composta por duas peças. Além do falo rosa, há um grande círculo verde que convida a escorregarmos lá para dentro, provando aquilo que Franz West defendia, sublinha Filipa Oliveira, “que as esculturas devem estabelecer uma relação directa com o público”. A arte é então para ser tocada, uma experiência que normalmente não podemos ter nas galerias ou museus. “Como esta é a relação que os coleccionadores têm com as obras de arte, quisemos que isso pudesse ser transmitido logo à entrada.”

A nova exposição do fórum, inaugurada na sexta-feira passada, mostra as colecções de Helga de Alvear, a histórica galerista espanhola, e de Luiz Augusto Teixeira de Freitas, um advogado brasileiro há décadas a viver em Portugal. Tem a particularidade de ter como curadora Luiza Teixeira de Freitas, filha do coleccionador, que se juntou a Filipa Oliveira para pensar esta exposição. “Aqui sou mesmo filha do meu pai. Eu que ando há anos a tentar ser outras coisas”, ironiza Luiza Teixeira de Freitas, actualmente também a trabalhar na curadoria da Bienal de Coimbra com Delfim Sardo.

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A instalação de Susan Hiller, Die Gedanken Sind Frei (2012) RICARDO LOPES

De facto, em Évora, além de curadora, Luiza Teixeira de Freitas, “que sempre trabalhou na colecção, muito próxima do pai”, dá-nos igualmente a visão da colecção a partir de quem a faz. Algumas das obras foram compradas a partir de sugestões suas, principalmente quando começou a trabalhar em Londres, depois de estudar curadoria na Goldsmiths, como as de Harroon Mirza, Nel Aerts, Karl Holmqvist ou Lynette Yiadom-Boakye.

“Nós temos muito orgulho em ter começado a coleccionar artistas no início da carreira. Quando comprámos esta pintura de Lynette Yiadom-Boakye, ela só tinha tido uma exposição em Londres e hoje está com exposições no New Museum, na Serpentine”, afirma Luiza Teixeira de Freitas, já no primeiro andar do fórum, apontando para a pintura da artista britânica Milk for a Maestro (2012). Filipa Oliveira revela que esta é uma das artistas que há muito tempo ambicionava mostrar em Portugal: “Ando a tentar há não sei quanto tempo, mas é muito difícil, porque ela faz poucas obras e é muito cobiçada. É uma das pintoras mais incríveis da actualidade. E em Portugal é importante mostrar obras em que os sujeitos são negros.”

Hoje, seria impossível juntar alguns destes artistas à colecção Teixeira de Freitas, explica a filha de Luiz Augusto Teixeira de Freitas. Não só porque a colecção entrou numa nova fase, abrandando as compras e concentrando-se agora em livros de artistas e documentos, mas também porque, ao contrário de Helga de Alvear, já não tem orçamento para acompanhar o mercado. “O mercado está muito aquecido e a inflação dos preços de alguns artistas é de mês para mês. É uma coisa meio desenfreada.”

Fazer um museu?

No dia seguinte à nossa visita, durante a inauguração, os dois coleccionadores explicarão numa conversa pública as razões por detrás das suas compras. Helga de Alvear, nos seus mais de 80 anos, precisa de se apaixonar pelo que compra. “Tenho de me enamorar de uma obra”, ouvimos a galerista contar numa gravação em diferido. A espanhola de origem alemã falou da grande instalação de Susan Hiller, apresentada na penúltima Documenta de Kassel, que encontramos na sala do rés-do-chão do fórum, intitulada Die Gedanken sind frei/ Os Pensamentos São Livres, que junta 100 canções de protesto em várias línguas, a cuja reprodução podemos aceder através de uma colorida jukebox Wurlitzer. “São canções que todos cantámos quando éramos pequenos.” (Algumas nem tanto, porque em Évora podemos escolher Parva que eu sou, dos Deolinda, uma canção de 2011 que fala da austeridade em Portugal.)

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A pintura de Lynette Yiadom-Boakye, Milk for a Maestro (2012) RICARDO LOPES

Quando olha para trás, para o que foi feito nos últimos 20 anos, Luiz Teixeira de Freitas, 55 anos, não fala de compras por paixão, porque a sua colecção começou a ser feita com a assessoria de um curador, Adriano Pedrosa, actualmente director do MASP de São Paulo. Teixeira de Freitas vê a sua colecção, o conjunto de todas as obras, “como a obra de arte ideal que gostaria de ter feito”, uma vez que não é um criativo. Se não há compras por paixão, não deixa de haver emoção, lembrando na conversa de Évora o momento em que comprou obras de Emily Jacir, uma artista palestiniana que podemos ver na exposição.

Voltamos à nossa visita e estamos com Luiza Teixeira de Freitas em frente à obra de Emily Jacir, intitulada Where We Come From (2001-2003), em que esta artista, cuja obra se confunde com activismo, ajuda compatriotas exilados a reverem lugares ou experiências a que já não têm acesso, como visitar o túmulo de um familiar ou comer um bolinho de que têm saudades. “Como nós somos libaneses de ascendência, há um forte foco no Médio Oriente.” O primeiro interesse, lembra, foi a arquitectura, depois houve a literatura, que na sua vertente infantil foi um foco partilhado com Beatriz Quintella, a mulher de Luiz e mãe de Luiza, entretanto desaparecida, fundadora da Operação Nariz Vermelho.  

Em Évora estão cerca de 70 obras, 25 das quais vêm de Espanha. Se a colecção Teixeira de Freitas mostra no fórum um maior número de obras, elas têm também um tamanho mais pequeno.  E se o coleccionador luso-brasileiro não revela a dimensão da sua colecção, já Helga de Alvear juntou cerca de 3000 obras. O que separa também as duas colecções é que, enquanto Helga de Alvear planeia abrir um museu em Cáceres — cidade a que doou a colecção e onde vai abrir um centro em 2019 com um projecto do atelier Mansilla e Tuñon —, Teixeira de Freitas sempre se opôs a pensar numa dimensão institucional em seu nome para as suas obras de arte.

Para Luiz Teixeira de Freitas, o projecto de Helga de Alvear é uma excepção de generosidade nesta lógica, explicou ao Ípsilon: “Para mim o importante é dar absoluta relevância aos artistas e às suas obras e dar total acesso das obras ao público através de empréstimos às instituições. Entendo que mostrar a colecção como um todo, dentro de um espaço próprio, poderia desvirtuar esta ideia, com o risco de transferir o foco das obras de arte para o coleccionador e utilizando o artista apenas como uma ferramenta de marketing pessoal do coleccionador. Embora reconheça que houve casos em que o coleccionador conseguiu manter o absoluto respeito pelo artista e pela sua obra, infelizmente esses casos são a excepção.” Por isso, para já, acrescenta, quer evitar criar uma casa aberta ao público para a sua colecção.

Este “momento de generosidade” dos dois coleccionadores, dizem as curadoras num texto que acompanha a exposição, cria “possibilidades incalculáveis” de diálogo entre as duas colecções, que está expresso no título da exposição. Por isso, pegaram numa obra do artista colombiano Gabriel Sierra, que representa um círculo, um quadrado e um triângulo e criaram três temas para a exposição a partir dessas formas. Estas “piscadelas de olho” entre as obras, como lhe chamam as comissárias, emergem aqui e ali, por vezes de uma maneira mais evidente, como nas obras de John Baldessari, Ernesto Neto ou de Mona Hatoum.

A última exposição

Esta será a última exposição sob a direcção artística de Filipa Oliveira, no Fórum Eugénio de Almeida, uma vez que este seu primeiro contrato não foi renovado por mais três anos. A directora será substituída por José Alberto Ferreira, professor na Universidade de Évora na área do teatro e que dirigiu, de 2004 a 2012, o Festival Escrita na Paisagem.

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Instalação de Marepe, Rio Fundo (2004), em primeiro plano RICARDO LOPES

O balanço que Filipa Oliveira faz destes três “anos incríveis” é muito positivo, embora reconheça que estava à espera de ver o seu contrato renovado. “Foi-me dada a oportunidade de desenhar uma programação de um centro de arte que se situasse fora de Lisboa e do Porto e que fosse uma verdadeira alternativa a este eixo. Foi um incrível desafio: pensar o que pode ser um centro de arte, que papel pode ter numa cidade e num país. Qual pode ser o papel da arte na construção, discussão e pensamento da sociedade contemporânea.” Foram também, acrescenta, três anos de enorme crescimento pessoal. “Deixei de ser uma curadora que trabalha para a inauguração, para passar a ser uma curadora que pensa exactamente a partir do momento em que a exposição se inaugura. Consegui trazer a Évora uma programação que olhou para os artistas portugueses, para os internacionais e ainda para os artistas que vivem e trabalham em Évora. Tudo junto, a dialogarem uns com os outros.” Um dos momentos recentes que destaca na sua programação foi o trabalho da artista italiana Marinella Senatore, que fez uma espécie de procissão contemporânea com a participação de 22 associações locais.

Segundo a directora artística, a Fundação Eugénio de Almeida, através da sua secretária-geral, Maria do Céu Ramos, justificou a não renovação do contrato com a vontade de “centrar a programação na missão da fundação, que é o desenvolvimento local e regional”.

Já Céu Ramos diz ao Ípsilon que a substituição de Filipa Oliveira, “que fez um bom mandato”, tem apenas como objectivo dar oportunidade a uma outra visão: “É uma decisão pela renovação, pela pluralidade dos discursos, do pensamento. A Filipa foi a segunda directora artística do Fórum Eugénio de Almeida, já na sua versão actual, instalado no espaço do antigo Palácio da Inquisição. A primeira directora artística foi a [brasileira] Claudia Giannetti, que fez um mandato de três anos. Esperamos que o José Alberto Ferreira faça também o seu mandato de três anos. A intenção é exactamente criar oportunidades para vários curadores.”

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