Não tenho ainda a velhice do tempo anterior à rádio, muito menos do anterior à televisão, mas conheci ainda um viver rural que mudou menos em séculos do que desde a minha infância. Nesse tempo de horas maiores no interior pós-medieval, quase ninguém tinha um televisor e os rádios eram aparelhos pesados estacionados em mesas ou aparadores e, quando associados a gira-discos, eram móveis em si mesmos, imponentes, vistosos, caros. Quando os ligávamos, iluminava-se primeiro um quadrante com risquinhos e números e nomes de terras conhecidas e outras que, tanto quanto sabíamos, poderiam ter sido inventadas para efeitos decorativos. Só depois de as válvulas aquecerem é que começavam a sair vozes pelos altifalantes, ou música, folhetins, relatos de futebol, terço, missa.
Como com os salários da época tudo era caro, não se podia ir muito além da mercearia, da tabacaria, da roupa feita em casa (ou na modista, para os dias de festa), tudo tinha de se aproveitar e reaproveitar, tinha de se fazer uma vida de coisas baratas, de modos antigos. E o entretenimento fazia-se de muitas histórias passadas oralmente de geração em geração, como riquezas que os mais velhos davam aos mais novos, ou como mercadorias exóticas levadas de uma terra para outra pelos vendedores ambulantes, pelo regresso dos soldados que tinham ido para longe cumprir o serviço militar obrigatório, pelas noivas que deixavam as casas dos pais para se instalar nas freguesias dos respectivos maridos. Essas histórias continuavam a ser espalhadas à noite, à lareira que tinha feito o jantar, ou nos quartos dos mais pequenos para os adormecer, e, de dia, pelas avós que tomavam conta dos netos ou pelas madrinhas que entretinham os afilhados, pelas raparigas que lavavam a roupa na presa do ribeiro ou do rio, ou pelo moleiro enquanto o milho de uma encomenda passava a farinha, ou pelo ferreiro enquanto substituía as ferraduras de um cavalo, ou pelas raparigas que iam encher os cântaros de barro à fonte, ou alguém numa malha, numa desfolhada, numa vindima, numa poda, numa apanha de azeitona.
Era tão bom como a rádio, dizia quem tinha rádio. Era melhor do que a rádio, dizia quem não tinha. Mas depois veio a televisão, que nos enganou a todos tão bem, com imagens de papas e bolos, que não reconhecemos que as histórias dos desenhos animados, dos filmes e séries que nos mostrava eram, afinal, as mesmas que nos tinham contado os vizinhos, os tios, os padrinhos, os avós, o carpinteiro enquanto dava um novo cabo a um ancinho, a criada de servir enquanto arrumava a cozinha.
Como eu gostava de acompanhar um rapaz que, armado de uma carrela (aquilo a que os citadinos chamam carrinho de mão) e uma enxada, limpava os caminhos do quintal de ervas daninhas! Esse era capaz de inventar no momento as histórias mais mirabolantes como se estivesse a contar algo de memória. O que ele fazia, descobri mais tarde, era – sem outro critério que não fosse o do efeito dramático – ir enxertando, em cenas dos últimos filmes que tinha visto nos cinemas Olympia ou Águia d’Ouro, no Porto, partes de aventuras que ele tinha lido aos quadradinhos em baratuchas revistas “O Falcão” ou “Ciclone”. Se fosse hoje, como estaria rico esse rapaz como argumentista, principalmente perante um público que estivesse disposto a perdoar-lhe alguns desafios à verosimilhança, tal como nós perdoamos a quem nos tem ofendido com canais de TV por cabo cheios de telefilmes aparentemente construídos com base no mesmo processo de reciclagem em que o meu amigo de infância tinha sido pioneiro...
Entre as histórias recebidas na credulidade da tenra idade, cujas impressões ficam para toda a vida, está esta, que ouvi à minha avó materna: um homem que tinha construído uma carreira irrepreensível de perfídia, assaltos, roubos, fraude fiscal e maus tratos a animais invertebrados, à hora da morte no cadafalso, mandou chamar pelo pai, criatura miserável mas de princípios éticos inabaláveis. Pediu o condenado filho o favor de se poder despedir do pobre pai com um beijo, mas, em vez de um beijo, num repente, arrancou, à dentada, o nariz daquele que, hoje em dia, seria mais certamente tratado nos meios de comunicação social por “progenitor”. Este – não se sabe com que sangue-frio, mas antigo, de boa qualidade – em vez de sair, a correr, a procurar o curandeiro ou o barbeiro da aldeia que trabalhasse em regime de exclusividade para o Serviço Nacional de Saúde da época, pergunta ao desnaturado descendente qual a razão de ser de tão velhaca tropelia. “Porque se me tivesses castigado quando roubei, assaltei ou falsifiquei estampilhas fiscais de 2$50 [dois escudos e 50 centavos], não teria acabado os meus dias com a corda na garganta e seria hoje, talvez, comentador desportivo, director de um canal de TV de um clube de futebol, ministro do Ambiente ou até primeiro-ministro”. Avassalado pela lógica do filho transviado para ramos menos rendosos da falcatrua, diz-se que o pai confessou a quem o quis ouvir que pior do que a dor de estar sem nariz (e do transtorno) era a dor moral da consciência pesada (o que comprovamos ser, em face de acontecimentos recentes, mero estratagema dramático. Todos sabemos que não existe tal coisa a que se possa chamar consciência pesada, levada que foi pelo vento permanente dos fluxos financeiros). Se me lembro bem do final, esse tal peso alegórico levou-o mesmo a enforcar-se ao lado do filho pendente, numa apoteose de tragédia com força moral profiláctica e instrutiva.
Ninguém negará que é uma bela história para contar às crianças numa noite de ventania, à luz das velas, depois de um breve corte de abastecimento de energia eléctrica, prontamente restabelecido a meio da tarde do dia seguinte.
Outra história curiosa ouvi-a contar com oito ou nove anos, em fascículos constituídos por algumas quadras cantadas pungentemente por uma criada do castelo onde eu vivia, enquanto ela arrumava a cozinha. Não havendo tempo para ouvir a versão integral numa só sessão, já que a presença da cantadeira era solicitada para outras áreas do serviço doméstico assim que terminava na cozinha, tive de ouvir várias partes em vários dias, como quem entra em momentos diferentes num cinema de filmes em sessões contínuas, até conseguir reconstituir mentalmente a sequência completa. Mas valeu a pena. Numa longa cadência arrastada pelo compasso da canção lúgubre e penosa, ouvi falar de um encadeamento de tragédias que assustaria o próprio Job bíblico, surgindo sempre uma situação pior do que a anterior, tornando tudo mais negro e mais triste e terminando tudo com a rapariga só e abandonada, tremendo de frio e de inanição sobre a laje que recobria a campa da mãe, à qual – todas as nossas esperanças vencidas – não tardaria a juntar-se.
Vejam como ainda hoje há memórias destes obscuros êxitos populares que não chegaram à MTV, não existem no Spotify nem no iTunes nem tiveram edição em CD, LP, cassete, disco de grafonola. O seu único suporte foi a voz da cantadeira que os tinha começado a ouvir enquanto a mãe lhe dava o peito, depois enquanto lavava a loiça, fazia as camas ou esfregava o soalho. As letras, essas circulavam em grandes folhas impressas, com ou sem ilustrações, vendidas nas centrais de camionagem aos passageiros das camionetas de carreira (hoje autocarros) das vilas e aldeias do interior, ou por um ou outro cego, que as trazia presas à lapela do casaco por um alfinete-de-ama, nas imediações das estações de caminho-de-ferro. Eram negócio contemporâneo ao dos rebuçados da Régua na Estação de S. Bento e Campanhã, no Porto, ou ao das regueifas levadas à cabeça, em cestas de vime, na Estação de Ermesinde.
Mas isso era antes, numa maneira de viver de um país antigo e atrasado. Agora não queremos nada disso, só ares da mais europeia modernidade que vieram arejar o bafio atávico com que nos queriam confundir. Infelizmente, ou, como dizem os espanhóis, desgraçadamente, não tem havido tempo nem lugar em que estes ares modernos não cheirem a madeira queimada.
Subo à torre mais alta do castelo onde moro e olho em redor: manchas pretas, colunas, traços entre o céu e a terra, mais largos ou mais delgados segundo a sua proximidade, são, todos eles, do mais triste que há. Não são ainda os mísseis da Coreia do Norte, são os nossos inovadores mísseis de circuito fechado, a nossa privativa arma de autodestruição maciça, destemido processo de darmos tiros nos nossos pés e, já agora, nos dos outros, seja por descuido, vingança, negócio, doença ou estupidez.
Mas calma, porque talvez tudo se resolva com umas sanções económicas em forma de multas criteriosamente aplicadas não ao Kim Jong-un, porque ele é conhecido por ser recalcitrante a ditames externos, mas à Sr.ª Maria e ao Sr. Joaquim, que não têm nem escola primária nem tribunal nem posto de saúde nem correios nem Finanças para entregar a declaração de rendimentos (nem é preciso, porque tudo se faz pela Internet) e que ficaram agora sem dez ovelhas, quatro porcos, o tractor e os anexos. A casa salvou-se?... Então há quem esteja muito pior...
Em volta, não é branco, não é neve. É cinzento, é quente, é borralho. Não aquele borralho de tantas histórias para crianças como “Os Músicos de Bremen” e seus sucedâneos vernáculos, não aquele borralho que fica das conversas à lareira após o jantar e entre o qual quem se levanta com as galinhas tenta, bufando, soprando, reavivar uma ou outra brasa sobrevivente da fogueira nocturna com que fará o café. Não, este queremos que se apague de vez. Este é o do Inferno que subiu à Terra para nos roubar vidas e o verde vital. É um cobertor de cinzas de luto pela desgraça que queremos varrido pelos ventos do Inverno e vencido pelos rebentos da Primavera, para nunca mais ser visto pelos que, então, ainda cá estiverem.
Aguardamos agora a chuva que cicatrize tudo isto.
Correio Premente
De Benjamim Constante, do lugar de Estrela de Alva, freguesia de S. Paio de Farinha Podre, concelho de Penacova: “Sou pároco numa paróquia problemática que não vou identificar e vejo-me aflito para rebater os nomes estapafúrdios com que os pais de agora querem baptizar os seus filhos e que – é de bradar aos céus! – vão tendo algum acolhimento nos serviços do Registo Civil. Chego a ficar com dores no fígado e cabelos em pé com os desconchavos que vão desencantar não se sabe onde para dar identidade às pobres criancinhas. Lembrei-me, então, de lhe pedir aliança neste assunto e munições retóricas para, juntando-as às que ainda tenho em reserva, montar uma barricada pertinaz contra esta barracada que vai tomando proporções indostânicas. Pode ajudar-me, por exemplo que não é dos piores, a impedir que venha a haver uma alma que, durante a sua breve procissão neste vale de lágrimas, tenha de responder ao chamamento de Cinderela Gágá?”
Não sei se posso, mas devo. De facto, também nos nomes próprios se podiam encontrar sinais da história de povos e grupos culturais que os preservavam e os transmitiam por herança aos descendentes directos ou protegidos, caindo nesta designação os afilhados. Há quem tenha pena que um organismo do Estado que deveria salvaguardar a história dos nomes permita que a uma menina que será senhora seja dado um nome como Marlene, que não é nome próprio, mas uma contracção dos nomes próprios Maria Madalena, um tratamento de âmbito familiar alemão comparável aos nossos Mitó (para Maria Antónia), Mizé (para Maria José), Zé Tó (para José António), Zeca (para José), Chico (para Francisco), etc. (a Marlene mais famosa que conhecemos foi a Dietrich, cujos nomes próprios eram, é claro, Maria Magdalene). Cinderela é forma espúria em português e nome inglês de personagem de conto de fadas. Vem de “cinder”, que é cinza em inglês, tal como, em França, Cendrillon vem de “cendre”, que é cinza em francês. Em português, e muito bem, no tempo em que se faziam adaptações para a nossa identidade cultural, arranjou-se Gata-borralheira, já que a ideia de cinza está em borralheira (de borralho). É também nome comum que consta nos dicionários. De outro modo, teria de ser qualquer coisa como Cinzarinha ou Cinisinha (do latim “cinis”, cinza). Quanto a Gágá, só pode ser Gagá ou Gaga, já que nenhuma palavra portuguesa pode ter dois acentos agudos. Se for Gagá, é sinónimo de senil; se for Gaga, quer dizer que gagueja. Tanto num caso como no outro, não se compreende o alcance nem a intenção, muito menos a responsabilidade por tal escolha. Pretende-se originalidade? Pretende-se raridade? Ou, meramente, deu-se baixa do estado de consciência ou folga ao raciocínio? Que tal consultar a lista de nomes próprios admitidos pelos serviços de identificação do Estado? Garanto que há lá nomes para todas as estações do ano, à altura de todos os eventos, à prova de todas as eventualidades, capazes de nos enternecerem ou de nos surpreenderem, de nos entusiasmarem e até de nos fazerem dar graças pelo nome que nos deram. Mesmo que seja o seu (coitado!...).