Antes de se tornar na presente manta de retalhos de dispersões a montante e a jusante de um rio que não se vê, alguns estarão recordados de que esta rubrica navegou por lagos de reconhecibilidades como as de tratar de erros de português e de divulgar palavras e expressões que hoje parecem mais estrangeiras do que as estrangeiras que as vieram substituir sem razão aparente, mas com força imperial. Pois bem, inspirado pelas campanhas eleitorais das eleições autárquicas que recentemente experimentámos em Portugal, interpreto o mais convincentemente possível o papel do bom filho que à casa torna, se bem que sem o benefício de ter cumprido pena prisional por desvio de fundos que me pudesse proporcionar maioria absoluta no coração absolutamente conquistado dos leitores (e, mais esperançosamente, das leitoras) tal como aconteceu numa das nossas cidades. E não é ficção…
Movido pelo ânimo de termos podido chegar-nos em paz às urnas eleitorais (mesmo para votar nos candidatos mais irrelevantes e ilusórios), embora temperado pelo desânimo de na Catalunha não os terem deixado fazer o mesmo num referendo que agora foi adiado para todos os dias, vou tentar abordar o caso do “mais bem”, que parece linguajar de crianças.
Acontece que as crianças também têm razão, independentemente (o que não é o mesmo que dizer “independente”, caros amigos brasileiros) de estarmos prontos a dar-lhes razão. Em vez de as corrigirmos precipitadamente, em alguns casos seria bom que conseguíssemos fazer uma reflexão que nos levasse a concluir que há aqui um caso curioso de confusão de identidade: “bem” com “bom” e “mal” com “mau”. E é tão fácil confundi-los (no Brasil ainda pior, pois pronunciam “mal” e “mau” de igual modo) que vou ter de ter cuidado para que me não confundam.
Tentando simplificar sem asneirar, quando queremos qualificar objectos, animais ou pessoas, usamos “bom” (latim “bonu”) ou “boa” no sentido positivo ou “mau” ou “má”, no negativo. Acho que não preciso de explicar o que é um homem bom, mas as particularidades do português fazem que um homem bom não seja o mesmo que um bom homem, só por o adjectivo vir antes ou depois do substantivo (os franceses são mais directos: um bonhomme é um boneco). É o mesmo caso para uma boa mulher e uma mulher boa, mas com implicações diferentes, que a deontologia muito rigorosa desta crónica me impede de especificar.
Uma casa boa, um carro bom, uma refeição má não suscitam dúvidas de compreensão. O mesmo não aconteceria se disséssemos “um carro bem”, “uma casa bem”, “uma refeição mal”. Na maioria dos casos, “bem” (latim “bene”) e “mal” usam-se como advérbios, para mudar o sentido de verbos ou adjectivos: o carro é bom, a roupa fica-lhe bem. Ou um carro bem construído, uma casa bem equipada, uma refeição mal cozinhada. A confusão adensa-se quando percebemos que para dizer mais do que bom ou mais do que bem usamos vulgarmente a mesma palavra, melhor, mas, na realidade, melhor deveria ser o comparativo de superioridade do adjectivo “bom”, não do advérbio “bem”. Do mesmo modo, também “pior” deveria ser o comparativo de superioridade do adjectivo “mau” e não do advérbio “mal”. Mas não é o que fazemos: dizemos que “é bom, mas poderia ser melhor”, que “está bem, mas poderá ficar melhor”.
“A galinha da vizinha é melhor do que a minha” é frase que está certa e sempre estará enquanto houver gente no mundo (e galinhas), porque o “mais bom” deve dizer-se “melhor” (e o “mais mau”, “pior”), mas o “mais bem” deveria ser “mais bem” e o “mais mal”, apenas “mais mal”. Infelizmente, para citar outra frase famosa portuguesa, “é tarde, Inês é morta”. Não temos ninguém disponível para se meter nessa luta. No entanto, há uma ocorrência em que temos forçosamente de nos unir para salvar a honra do convento, repondo alguma sanidade nesta confusão colectiva: antes de particípios passados ou adjectivos verbais (como quiserem): um livro melhor do que outro que está bem escrito só poderá ser “um livro mais bem escrito” (e nunca “um livro melhor escrito”). Do mesmo modo, “um carro mais bem construído”, “uma mulher mais bem arranjada”, “um quadro mais bem pintado”; “uma medida mais mal justificada” (e nunca “pior justificada”), “uma criança mais mal-alimentada”, “uma pessoa mais mal-amada”.
Por isso é que devemos ignorar quando na televisão ouvimos, como correcção de um erro, dizer “melhor dito”, quando deveriam dizer “mais bem dito”. E não receiem a confusão que poderia estabelecer-se, na oralidade, entre “bem dito e “bendito”, pois o sentido da frase não permite tal equívoco. Agora dizer “melhor dito” justamente no momento de correcção de um erro é como fazer uma má alteração de última hora a um mau poema, tornando-o ainda pior (também temos, em português, uma frase para dizer isso: “Foi pior a emenda que o soneto”...).
E pronto, assim cumpri a minha função pedagógica, a minha obrigação moral, a minha predisposição vocacional, o meu atavismo fatal. E, tal como se dizia no circo de antigamente, assim termino a minha actuação de hoje.
Apenas um pensamento mais, para quem estranhar a secura didáctica: temos os exemplos, temos a utilidade, temos a justificação técnica, mas onde está a poesia, onde está a fonte, o reflexo, a humanidade, a gargalhada, o molho de flores, o bico de pássaro, a folha ao vento, a mão no ombro, a curativa perna, velada ou nua?...
Imagino que estejam nos jardins dos leitores ou, melhor ainda, nas almas das leitoras.
Correio Premente
De Hermes Trismegisto dos Santos, Salvaterra de Magos: “O homem é lobo do homem. Cuidado com os idos de Março! O calendário maia acabou em 2012. Achais que é apenas um acaso? Pobres diabos, que passais os vossos dias a andar em círculos, todos contentes... A salvação só poderá vir de uma raiz de mandrágora desenterrada em noite de lua cheia da parcela que fique à sombra de um campanário. Juntar 13+13 pedaços de casca de um tronco torto de sassafrás, meio sapo seco, meia libra de resina de damasqueiro, meio queijo de qualquer serra, meio litro de aguardente de bagaço de uva, três dentes de alho, uma cabeça de bode. Fazer uma decocção durante três horas, passar por pano de linho e reservar. Servir com acompanhamento de nabo, pepino e beterraba. É daqui que os poderosos – principalmente aqueles que são “animais ferozes” – retiram o seu poder de fazer amigos e influenciar pessoas, combatendo igualmente a espinhela caída, o trânsito intestinal incerto, o azar aos negócios e os estabelecimentos mal iluminados. Um novo dilúvio aproxima-se. Quem não flutuar será dado pelas companhias de seguros como irremediavelmente perdido. E quem está por trás das companhias de seguros? O homem é lobo do homem. E, no final dos tempos, os homens serão mais raros do que os ciprestes. E as mulheres continuarão a perseguir-se no Facebook até acabar o combustível que alimenta o Sol. Toma cuidado, meu jovem. Toma muito cuidado!”
Certo. Obrigado pela sua preocupação e pela parte do “jovem”, mas sou servido por um posto de saúde com um atendimento irrepreensível. Até dá gosto ficar doente. Quanto à receita que tão amavelmente decidiu partilhar comigo, devo dizer que, embora com relutância, vou tentar resistir à tentação de encomendar já os ingredientes que vividamente menciona e embarcar nessa aventura gastronómica de primeira água. Não me leve a mal, mas tenho um estilhaço de guerra em posição melindrosa que se move sempre que me confronto com pesadelos com sapos secos ou queijos. Além disso, nunca tomo nada entre as refeições. Espero, sinceramente, que, para sua tranquilidade e nossa, um dia lhe atribuam um médico de família. As melhoras!