Os afectos contra o populismo
A dimensão afectiva da política não prejudica necessariamente a sua dimensão racional.
Num artigo publicado ontem neste jornal, “Chamem o Antifluffy”, José Pacheco Pereira escreve: “Uma democracia não pode viver sob uma espécie de ditadura dos afectos, o que não quer dizer que possa viver sem emoções. Mas trata-se de coisas distintas, sendo que, se se abafa o papel da racionalidade, o que acontece depois destes banhos afectivos são muito más decisões, tomadas à pressa para dar um escape à pressão, mas que ou não mudam nada, ou, pior ainda, inquinam por muito tempo condições que a tragédia proporciona para realizar melhorias.”
O alvo de Pacheco, que sustentara aliás a mesma tese na última “Quadratura do Círculo” da SIC, é obviamente Marcelo. Mas para além da sagaz argumentação desenvolvida ao longo do seu texto e da pertinência das razões que apresenta — e a que também sou sensível, como creio ter deixado claro na crónica de domingo passado —, parece-me redutor o entendimento de Pacheco sobre a “ditadura dos afectos” e o risco de esta abafar o “papel da racionalidade”.
A dimensão afectiva da política não prejudica necessariamente a sua dimensão racional e pode mesmo potenciá-la desde que haja um saudável equilíbrio entre ambas. Aliás, nos tempos em que vivemos, a fria racionalidade da política, com as suas derivas mais ou menos tecnocráticas, alienando a proximidade com os cidadãos, tem favorecido, precisamente, o perigo do populismo. Há afectos e afectos, como há emoções e emoções (não percebo, aliás, em que é que os primeiros são piores do que as segundas, antes pelo contrário). Tudo depende da forma como se manifestam, se desenvolvem e articulam com essa racionalidade que Pacheco coloca como princípio essencial das boas decisões políticas.
O que a tragédia dos incêndios pôs a nu, para além dos velhos erros estruturais da gestão do território ou do laxismo e incapacidade de prevenção dos organismos do Estado, foi o défice afectivo revelado pelo Governo face ao sofrimento das populações. Ora, só uma figura poderia ter preenchido esse défice — e fê-lo com um sentido humano de oportunidade à altura das circunstâncias e perante o vazio que se instalou: o Presidente da República. Sem a pressão positiva dos afectos de Marcelo, não só as populações vítimas da catástrofe se sentiriam desamparadas como o Governo não teria porventura despertado para a urgência de agir, ao contrário do que fizera até então. O risco do populismo estaria, sim, no aproveitamento da tragédia por demagogos oportunistas que tenderiam a ocupar o terreno. Marcelo funcionou como um dique contra essas tentações — que animaram, aliás, personalidades da direita — e cimentou a exigência da tomada de decisões apropriadas por parte do Governo.
Evidentemente, não vejo Marcelo como uma espécie de Pai Protector de um país de desvalidos e não sou tão ingénuo que menospreze o cálculo político dos seus afectos. Que o Presidente exagera frequentemente nas suas intervenções a propósito dos temas da actualidade é, aliás, uma evidência — e já o critiquei aqui por causa disso. Mas no caso de uma tragédia com estas proporções — sem esquecer as suas repetidas chamadas de atenção para a anedótica mas insustentável novela de Tancos —, não vejo em que é que ele estaria a patrocinar uma “ditadura dos afectos”. Sim, os afectos podem ser até inseparáveis da razão e abrir caminho a uma nova sensibilidade política, a uma maior proximidade entre o Estado e os cidadãos. É isso que faz falta não só em Portugal como em tantos países próximos e longe de nós. É isso, finalmente, que funciona como vacina contra a praga populista que ameaça as democracias.