Desventuras do ensino da Língua Portuguesa
Será difícil compreender que é impossível uma escola funcionar com reformas contínuas, ordens e contra-ordens, numa manifesta falta de respeito pela comunidade escolar?
O presente não se compreende sem o passado, nem o futuro se constrói sem esse diálogo reflexivo, em que a memória é essencial. No entanto, e no que ao Ensino diz respeito, com realce para a disciplina de Português, pensou-se ser possível quebrar essa ligação com uma imposição, a favor da qual se envolveram, entusiasticamente, aventureiros que, com ligeireza e à vontade, se movimentaram, e continuam a movimentar, nos corredores e gabinetes do Ministério da Educação (ME). Sempre houve quem gostasse de se pôr em bicos de pés, na ânsia de ser notado e incluído numa espécie de corte de confiança, ou se vendesse por um prato de lentilhas. [1] Em comum, o oportunismo, a arrogância, o vício de bajular, a pobreza espiritual e cultural. Lamentavelmente, a Educação, ao longo dos anos, tem sido um terreno fértil para estes aventureiros.
Foi nas minhas discussões com colegas da então direcção da Associação de Professores de Português (APP), nomeadamente com Paulo Feytor Pinto, seu presidente, que pela primeira vez ouvi defender que a Literatura deveria ser retirada dos programas de Português porque não tinha qualquer utilidade para os alunos, devendo ser substituída por textos “funcionais”, “utilitários” e “informativos”. Sublinho o vocábulo porque na altura me surpreendeu o triste raciocínio. A Literatura ficaria reservada só para os alunos de Humanidades. Os restantes dedicar-se-iam exclusivamente à Língua (daí a proposta de mudança de nome da disciplina de Português para Língua Portuguesa) e o seu ensino focar-se-ia numa Gramática renovada pela moderna investigação linguística.
O trabalho realizado pela APP, “Relatório sobre O Ensino e a Aprendizagem do Português na Transição do Milénio” (2002), em estreita cumplicidade com o Ministério da Educação que, então, ultimava a reforma curricular de 2003, veio reafirmar o pesadelo, ou seja, a decisão de privilegiar o “português funcional”, o “útil”, bem como a reflexão sobre “o funcionamento da língua”, aparecendo a Literatura, que não se conseguira expurgar completamente dos programas, como era vontade da APP e comparsas, como um mero tipo de texto, entre tantos outros considerados “úteis”. A justificação da mudança apontava, reiteradamente, para a necessidade de responder com eficácia “às múltiplas solicitações de empregadores e da sociedade em geral”. Um discurso que não se distancia do actual, aliás, perceptível na intervenção do Secretário de Estado da Educação (SEE), João Costa, aquando da realização da Conferência Currículo para o Século XXI, em Abril de 2016, na Fundação Gulbenkian.
Depois deste primeiro golpe, que menorizou efectivamente a Literatura nos programas, retirando inúmeros autores clássicos porque sem qualquer “utilidade” para os alunos e contrários “aos seus interesses” (ideias que ainda hoje vingam no ME), surgiu a “Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário” (TLEBS), uma inovação indissociável do nome do actual SEE, João Costa, cujo objectivo seria, assim fora dito aos professores, “uniformizar a nomenclatura gramatical”, devastada, aliás, por uma outra aventura linguística, a “Gramática Generativa” (a das “árvores”, como alguns a conhecem). O certo é que não houve uniformização alguma, pois não era esse o objectivo, e professores e alunos viram a Gramática tradicional substituída por uma caótica e estéril descrição do funcionamento da língua, considerada por linguistas de referência como um verdadeiro “disparate”. Os disparates foram tais que o próprio ME, face à intensidade da polémica gerada, reconheceu a necessidade de aqueles serem corrigidos, um trabalho que integrou a esposa de João Costa, que considerara “incontornável” a aplicação da TLEBS, fazendo ambos parte da Associação Portuguesa de Linguística (APL).
Eis duas Associações (APP E APL) e dois nomes (Paulo Feytor Pinto e João Costa, cúmplices na origem da desastrosa e precipitada alteração feita ao ensino da disciplina de Português, na Reforma de 2003, cujos efeitos nocivos permanecem, e que funcionaram como interlocutores quase exclusivos do Ministério da Educação. Eis os que consideraram, a uma só voz, útil a TLEBS e o “português funcional”, mas inútil a Literatura, como inútil a contextualização dos autores e das suas obras, através da qual um professor faz intervir outras artes, bem como a História ou a Filosofia. Tudo inutilidades e “perda de tempo”.
A propósito da controvérsia “útil” / “inútil” e da advertência para a “utilidade de saberes inúteis”, não posso deixar de transcrever uma reflexão muito criativa de Oscar Wilde (1854-1900) sobre a Arte, que de há muito me acompanha: Pode-se perdoar a um homem o fazer uma coisa útil, enquanto ele a não admira. A única desculpa que merece quem faz uma coisa inútil é admirá-la intensamente. Toda a arte é absolutamente inútil.
João Costa talvez não conheça ou não queira compreender o sentido da frase de Óscar Wilde. Bem pode referir a cidadania ou a necessidade de desenvolver o espírito crítico ou defender o estudo do Latim e do Grego ou a importância da Arte, na qual se inclui a Literatura. Falta seriedade e exigência ao seu discurso, e as suas decisões têm-no evidenciado. A relação do SEE com a Literatura é idêntica à da ex-ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, e que ficou indiscutivelmente espelhada quando, a propósito do prolongamento do horário dos alunos do 1.º ciclo, na escola, questionava, com o seu habitual sarcasmo, se os professores não seriam capazes de “entreter” os alunos com “um poemazito”? Talvez as palavras de António Damásio, mais explícitas, propiciem a ambos uma benéfica reflexão sobre o assunto: “[…] o teatro, a literatura, a poesia e outras artes criam emoções inesquecíveis e a sua aprendizagem é muito importante na criatividade, no desenvolvimento de capacidades ligadas à inovação. […] As emoções são fundamentais para as decisões racionais, que por sua vez determinam acções.”[2]
A estas aventuras desastrosas, no que ao ensino do Português diz respeito, acrescenta-se a do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), indissociável do nome de Malaca Casteleiro, e cujas nefastas consequências junto dos alunos são amplamente visíveis, com os professores forçados a cumpri-lo e a fazer papel de ignorantes, caso respondam às dúvidas dos alunos, suscitadas pelas inúmeras incoerências do AO 90, como aconselhou a actual presidente da APP, e parafraseio, é assim porque assim foi decretado. Uma nova forma de reflectir sobre o “funcionamento da língua”!
A Língua Portuguesa, património colectivo, foi também atingida pelo conceito de inutilidade, dada a sua “complicada e difícil ortografia” (o que dirão os alemães, os polacos ou os chineses?) à qual os “elitistas” (os não-acordistas) resistem contra a vontade “do povo povo”. De novo, nas palavras de Malaca Casteleira e acólitos, entre os quais se inclui igualmente a APP, o discurso miserabilista, o desejo de manter a ignorância, de impedir o acesso à cultura e à compreensão da história da palavra que a etimologia, a componente cultural da ortografia, revela, criando curiosidade e afeição pela palavra. Os alunos não gostam de acentos, tirem-se os acentos, complica-se a escrita com as consoantes “c” e “p”, que desgastam também a memória das crianças, omitam-se, são algumas das justificações “científicas” dos mentores do AO 90.
Esta famigerada aventura não teve, inicialmente, bom acolhimento no próprio ME, uma atitude de rejeição que, no entanto, pouco durou. Com efeito, o ME resignou-se à imposição, obedecendo às ordens do partido e do governo e esquecendo que o seu parecer contrariava com veemência a implementação do AO 90. Acabou por pactuar com abusos e segredos (os pareceres contrários esquecidos em gavetas do Instituto Camões e outros) desligando-se da transformação que se exigia.
Não cabe, neste artigo, exemplificar o caos que atinge o ensino da Língua, na Escola, mas ele é indesmentível, porque amplamente documentado, por mais que Malaca Casteleiro, com descaramento, diga o contrário.
Os alunos não sabem ler (passam, aliás, obrigatoriamente, para o 2.º ano, não tendo essa capacidade), não sabem gramática, não sabem interpretar, escrevem mal, não dominam um vocabulário mínimo. Será difícil compreender que tudo isto é resultado dos aventureiros que têm passado pelo Ministério da Educação, ao longo dos anos, em estreita cumplicidade com os partidos a que pertencem, incapazes de um pacto que perdure e defenda o ensino de tantas experiências nefastas? Será difícil compreender que é impossível uma escola funcionar com reformas contínuas, ordens e contra-ordens, numa manifesta falta de respeito pela comunidade escolar? Não se compreendeu ainda que é necessário reformular a formação dos professores, encharcados em teorias que massacram qualquer inteligência e consciência? Será difícil compreender que os professores, com tanta intromissão, com tantos descritores de desempenho a ter em conta, com tanta falta de liberdade para preparar as suas aulas, com tantos relatórios a elaborar, com tanta imposição, a mais grave das quais, a do AO 90, que os seus próprios mentores concordam estar cheio de “imprecisões, erros e ambiguidades”,[3] estão a perder a possibilidade de ensinar, precisamente porque estão a perder o sentido de ensinar?
Exigir-se-ia uma forte união entre os professores, que os sindicatos pudessem reforçar, mas têm de ser também os professores a conduzir os seus próprios anseios e a não esperar que outros o venham fazer por eles!
João Costa, que não encontrou melhor argumento do que atacar de novo os professores, em relação aos resultados obtidos, nas provas de aferição, pelos alunos do 8.º ano, não terá consciência do que fez ao longo destes anos, só ou acompanhado?
Ter-se-á já esquecido que reiterou também, em 2008, o parecer da APL de 2005 que contrariava a entrada em vigor do AO 90?
Precisa de reflectir, e muito, senhor Secretário de Estado!