Sobre as manobras em Belém e São Bento
Não nos preocupemos em demasia com as picardias entre Presidência e Governo. Existem desde sempre e podem ser eternas, como os diamantes.
Francisco Sá Carneiro tinha um sonho. Tinha vários, com certeza, mas um deles ficou registado numa frase que vários sociais-democratas repetiram ao longo dos anos e que se cumpriu em 2011, com Pedro Passos Coelho em São Bento e Cavaco Silva em Belém. “Um Presidente, uma maioria, um Governo”. A frase não foi só o slogan da campanha presidencial de 1980, foi também um ideal que os sociais-democratas perseguiram e hão-de continuar a perseguir.
Com Cavaco e Passos percebeu-se que o sonho não passava disso mesmo – e alturas houve em que roçou o pesadelo. O então Presidente mostrou que um chefe de Estado não está lá para facilitar a vida ao executivo, nem mesmo quando é da sua cor política, e que um eventual entendimento, seja sob a forma de cooperação institucional ou estratégica (expressões que Cavaco Silva usava para se referir à coabitação com José Sócrates), existe como objectivo geral. E também mostrou que, por vezes, as relações pessoais atrapalham as políticas.
É por isso que a imagem de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa debaixo do mesmo guarda-chuva, em Paris, nas celebrações do 10 de Junho de 2016, não passará disso mesmo: uma imagem. Uma das fotografias possíveis da realidade política que os portugueses tinham naquele instante – um primeiro-ministro de esquerda a segurar o guarda-chuva e a proteger o Presidente que veio da direita (palavras de Marcelo Rebelo de Sousa). Não nos espantemos se não for sempre assim. É uma fotografia que não combina com o sistema semipresidencialista em vigor.
Há uns tempos, na sequência das eleições legislativas de 4 de Outubro de 2015, muito se escreveu sobre o regresso da importância do Parlamento à política portuguesa e, inclusivamente, sobre a transição do regime semipresidencialista para o parlamentarista. O que se percebeu esta semana, no rescaldo dos incêndios e de todas as manobras políticas que se fizeram a pretexto, é que não houve transição nenhuma: o primeiro-ministro continua a ter dupla responsabilidade, perante a Assembleia, mas também perante o Presidente da República. E o Presidente, apesar de não estar no executivo, continua a fazer política. E que política.
É preciso não esquecer ainda que os elevados níveis de popularidade com que os portugueses brindam Marcelo Rebelo de Sousa nos barómetros e estudos de opinião também são a fotografia de um momento preciso. Já duram há vários meses, é certo, mas hão-de subir e descer ao longo do mandato, numa linha ondulante que pode ser um tormento para quem lhe dá importância. A realidade muda, os políticos deslizam, há tragédias e gaffes, amores e humores. No final, o que precisamos é de um Presidente atento e de um primeiro-ministro actuante.
Não nos preocupemos em demasia com as picardias entre Belém e São Bento. Existem desde sempre – entre Mário Soares e Cavaco Silva atingiram o auge, a ponto de dificilmente lhe podermos chamar picardias – e podem ser eternas, como os diamantes. Mas haverá sempre algo mais valioso a preservar. E, como recordação, teremos sempre a fotografia de Paris.